Após mais uma longa pausa, o Traduzindo a Dublagem retorna com um post pra lá de especial com um estudo comparativo incrível! Sendo originalmente um artigo acadêmico escrito há alguns anos por Ana Cecília Montenegro Bayreuther e o meu grande amigo da tradução audiovisual, João Artur Souza, com a devida autorização, trouxe este texto super informativo para ser compartilhado aqui no blog. Pronto pra conferir? Vem comigo! 😉
Afinal, do que se trata esse post? Se você já acompanha o Traduzindo a Dublagem há um tempo, sabe que cada país ao redor do mundo tem uma relação muito particular com o audiovisual e, obviamente, com a própria dublagem, que acaba sendo a opção preferencial em alguns países como Itália, Canadá e até na China! Só que não são desses países que vamos falar hoje.
Na verdade, nossos protagonistas serão Brasil e Alemanha, e as comparações realizadas entre ambos tomaram como base os desafios mencionados por Frederic Chaume (2013), um dos maiores tradutores e estudiosos da área de dublagem na Europa que, inclusive, tem uma entrevista sensacional aqui no blog (pra conferir, clique aqui e aqui!) Ele afirma: “Os maiores desafios consistem em redesenhar o mapa da dublagem mundial e descrever os novos processos nos quais a dublagem está inserida, junto de suas consequências sociológicas, ideológicas e econômicas.”
Dito isso, o post de hoje tem como intuito proporcionar um insight sobre a prática profissional e seu impacto nas categorias citadas por Chaume, comparando/contrastando esses dois países que fazem grande uso da dublagem. Para tal, foi adotada uma abordagem histórica e descritiva para esclarecer as possíveis razões para esses dois países, mesmo com tantas diferenças, terem adotado a dublagem de forma tão enérgica. Ao longo do post, exploraremos aspectos socioculturais importantes, tanto do Brasil quanto da Alemanha, começando pelo campo da legislação e da política.
Legislação e política
Branca de Neve e os Sete Anões, de Walt Disney, foi o pilar da dublagem no Brasil em 1938 e, 23 anos depois, por meio de um decreto, a dublagem tornou-se obrigatória na TV aberta brasileira no governo do presidente Jânio Quadros. E olha que isso foi apenas 10 anos após a transmissão inaugural do país, quando os canais de TV ainda contavam principalmente com conteúdo estrangeiro pra preencher a grade! Embora historiadores não listem as razões que levaram a tal decreto, é plausível inferir que políticas nacionalistas desempenharam um papel importante para essa decisão.
A dublagem no cinema alemão, como em outros países da Europa, começou com a importação de filmes falados no começo da década de 1930, como uma alternativa às refilmagens de produções de Hollywood, mas que acabaram se mostrando muito caras. Entretanto, o início da transmissão televisiva na Alemanha data de 1932, um ano antes do começo do Terceiro Reich, período em que se deve levar em conta o uso dos meios de comunicação para propaganda política, os eventos que se desenrolaram na Segunda Guerra Mundial e, ainda mais importante, a influência de americanos, soviéticos, ingleses e franceses ocupando o território alemão e influenciando a política e a mídia.
População e analfabetismo
Devido ao alto custo da dublagem, a decisão de dublar ou legendar um conteúdo está diretamente relacionada ao número de espectadores que um produto audiovisual deve alcançar. Nesse contexto, o nível de analfabetismo é um índice confiável para se estimar as estatísticas de um possível público-alvo.
De acordo com uma pesquisa feita pelo IBGE em 2013, 8,5% da população com idade entre 15 e 64 anos é considerada analfabeta, um número impressionante de 13 milhões de pessoas. A título de comparação, esse número é quase três vezes a população da Finlândia, um país que faz mais uso da legendagem, por exemplo. No entanto, se considerarmos o analfabetismo funcional, esse número chega a assombrosos 27%, ou seja, 41,3 milhões de brasileiros.
Em 2011, a Universidade de Hamburgo conduziu um estudo na Alemanha, país com maior população da União Europeia, que revelou que 4,5% da população com idade entre 18 e 64 anos é analfabeta, ou seja, 2,3 milhões de pessoas. Esse número chega a 14,5%, ou seja, 7,5 milhões de pessoas, levando em conta o analfabetismo funcional. Entretanto, é importante ressaltar que a leitura de legendas é um processo muito mais difícil e específico do que a leitura normal e requer um alto nível de proficiência, ou seja, níveis de alfabetização não foram desenvolvidos para lidar com esses detalhes, e os resultados podem variar consideravelmente de acordo com a metodologia adotada.
Modalidades coexistindo – mudança de paradigmas?
O Brasil adotou tanto a dublagem quanto a legendagem durante a maior parte da sua história audiovisual, sendo que a primeira dominou o conteúdo feito para uma audiência mais jovem e a segunda dominou o conteúdo dos canais da TV fechada, que começaram a operar em meados da década de 1990. Como o público-alvo eram as famílias de alta renda e que podiam pagar pelo serviço que era considerado caro na época e que também tinham uma tendência sociocultural que levava a apreciação do áudio original das produções, os distribuidores adotaram a legendagem que, além de ser mais barata, tem um processo mais rápido se comparado a dublagem.
Porém, no início dos anos 2000, o cenário econômico brasileiro prosperou e levou ao fenômeno que ficou conhecido por aqui como “ascensão da classe C”, em que uma boa parte da sociedade desprivilegiada aumentou sua renda e, consequentemente, seu poder aquisitivo. Como havia mais pessoas dispostas a gastar com entretenimento e a pagar pelo que antes era um serviço de TV exclusivo, a preferência pela dublagem cresceu significativamente entre assinantes e frequentadores de cinema.
Em 2010, com o aumento da popularidade da TV digital, disponibilizar um mesmo conteúdo dublado e legendado passou a ser viável. Entretanto, a maioria dos distribuidores passou a lançar apenas conteúdos dublados, o que frustrou e aborreceu os assinantes de longa data. A insatisfação irritou também os frequentadores de cinema, que passaram a ter cada vez menos opções, mas, principalmente parte do público surdo e ensurdecido que, na maioria dos casos, estaria satisfeito com uma legenda interlinguística.
Já a Alemanha tem uma longa tradição de dublagem de todos os tipos de mídia e o maior número de estúdios de dublagem per capita e por área do mundo. Pode acreditar, o mercado de dublagem germanófono é o maior da Europa! Além da Alemanha, ele engloba a Áustria e parte da Suíça. Todo conteúdo da TV aberta alemã é dublado, deixando o conteúdo legendado e com áudio original para as redes de TV menores e com programação pay-per-view. Já nos cinemas, a situação não é muito diferente, já que versões legendadas só estão disponíveis nas cidades grandes e, por muitas vezes, em horários alternativos.
Até o início da consolidação da Netflix na Europa, em meados de 2014, apenas versões dubladas eram disponibilizadas pelas concorrentes da famosa plataforma de streaming. A disponibilização de conteúdo legendado e dublado foi um dos trunfos da empresa que, logo, conseguiu grande adesão de novos assinantes, principalmente do público jovem.
Agentes no sistema de dublagem
Devido à demanda modesta até meados da década de 1990, o processo de dublagem no Brasil era restrito a um número pequeno de estúdios e profissionais que, muitas vezes, tinham mais de uma tarefa na mesma produção: dirigir, atuar e, por vezes, até traduzir. Esses profissionais envolvidos nas produções dubladas se tornaram altamente capacitados e, com certeza, desempenharam um papel importante no estabelecimento do alto padrão de qualidade pelo qual a dublagem brasileira é conhecida.
Nos anos 2010, devido ao crescente processo de digitalização, ao crescimento da popularidade dos serviços de streaming e à procura cada vez maior por produções dubladas, o ramo da dublagem testemunhou um aumento de demanda inédito e inacreditável. Essa situação saturou a mão de obra especializada e criou abertura para vários profissionais da área e para a criação de novos estúdios, em um grande “boom da dublagem brasileira”, que acarretou numa nova configuração do mercado desse segmento no país.
Já na Alemanha, a longa tradição de dublagem de todas as mídias manteve o mercado estável e seguro ao longo dos anos. A condição dos profissionais nos respectivos sistemas também diz muito sobre a prática de cada país. Atores e diretores, por exemplo, são mais valorizados no mercado de trabalho devido à forte presença de sindicatos e à visibilidade entre os fãs. Já os tradutores da área raramente têm o reconhecimento devido e precisam lutar por melhores condições de trabalho e remuneração.
E aí? Gostou de saber um pouco mais as semelhanças e contrastes entre os mercados brasileiro e alemão de dublagem? Não se esqueça de deixar o seu comentário e, como sempre, um grande abraço e até o próximo post! ?
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