O traduzir implica diversas decisões que precisam ser tomadas a todo instante, independentemente do segmento. Em diversos momentos, o tradutor precisa colocar na balança as informações que o original lhe transmite para poder passar da melhor forma possível para o receptor/consumidor na língua de chegada.
De modo a propor uma nova reflexão, tal como em um dos posts passados aqui no Traduzindo a Dublagem, este primeiro post do mês de março propõe abordar um pouco do tema palavra versus efeito no âmbito da tradução audiovisual. Quem está na área há um certo tempo sabe que esse é um dilema frequente, já que, no momento da tradução, temos as palavras utilizadas no original e do outro o efeito provocado por elas.
Muitos telespectadores ainda não percebem que, dependendo da situação, esse efeito tem uma importância muito maior do que as palavras transmitidas no idioma original, de modo que, para se manter esse efeito no ato tradutório, as palavras precisam ser trocadas. Não se preocupe porque vamos por partes. Pronto? Vamos lá! 😉
Começaremos partindo do seguinte pressuposto: eu acredito que você concorde que todas as produções audiovisuais têm como finalidade causar algum efeito sobre nós, afinal, basta olhar os gêneros: se hoje eu estou a fim de rir, devo assistir ao quê? Uma comédia, é claro. Putz, hoje eu estou na pior e quero chorar. É provável que eu assista a um drama. Mas não, hoje eu quero mesmo é levar uns bons sustos. Tem pedida melhor do que um bom filme de terror?
Mesmo lendo brevemente a sinopse das produções e identificando seus gêneros, já podemos antecipar minimamente o que nos aguarda, e esses rótulos estão presentes em outras áreas também. Quantos gêneros literários existem atualmente, por exemplo? Quantos gêneros diferentes de games existem e que atendem a públicos tão variados?
Tendo isso em mente, voltemos à tradução audiovisual. Eu acredito que, enquanto tradutor desse campo, mais especificamente, da área de dublagem, tenho o dever de manter o máximo possível dos efeitos e das sensações presentes no original na nossa língua. Agora como eu vou chegar lá é que são elas, não é mesmo? Ainda dentro do pressuposto de que preciso causar algum efeito no meu telespectador nos momentos em que certa produção me exige, muitas vezes, não posso me apegar de forma excessiva a palavra ou a precisão tradutória, já que uma fala na língua inglesa, por exemplo, pode causar um impacto X, mas não vai causar o mesmo impacto para os telespectadores brasileiros.
O bom tradutor, principalmente com a prática, começa a se atentar cada vez mais para esses momentos em que o efeito prevalece sobre a palavra. Não estou dizendo que seja algo que aconteça em toda santa fala e que isso deva ser usado como desculpa para o tradutor modificar tudo que quiser ao seu bel prazer. Obviamente, sempre deve existir o compromisso com o original, mas é inegável que, em certos momentos e em certas falas, esse compromisso precisa ser dosado. Do que adianta eu me ater a uma informação, traduzi-la literalmente com a intenção de manter o que muitos definem como fidelidade, mas não causar efeito algum no telespectador brasileiro, quando o telespectador estrangeiro riu, chorou ou se assustou?
Justamente por conta disso, a tradução de comédias é um verdadeiro desafio para muitos tradutores, até para os mais experientes, já que exige um grau maior de adaptação do que tradução em boa parte das falas, ou seja, a intervenção do tradutor é muito maior. Ah, e pode ter certeza de que os dubladores também serão desafiados dentro do estúdio. Assista abaixo a um trechinho dublado da primeira comédia que traduzi: Monitores do Barulho (Resident Advisors).
Como você pode imaginar, a tradução literal de piadas e trocadilhos, na maioria das vezes, tende a não causar efeito algum nos telespectadores brasileiros. Dessa forma, por conta de uma má tradução, a obra acaba sendo descaracterizada e não cumprindo o seu papel. Posso afirmar, sem medo algum, que uma das principais lições que tive ao longo das minhas experiências tradutórias é que fidelidade não é sinônimo de literalidade.
Mas Paulo, no caso das comédias, e se eu não conseguir manter o mesmo espírito que a piada original? E se eu precisar fazer uma alteração muito maior? Minha resposta é: “vai fundo”. De novo, eu acredito que, se há uma piada clara em uma certa cena, ela está ali para fazer o telespectador rir na língua original. Ponto final. Dessa forma, o telespectador brasileiro também precisa rir e, caso isso não aconteça porque eu resolvi traduzir a piada literalmente, eu fracassei naquele momento. Devo confessar que as comédias merecem um post só pra elas, então se quiser que eu faça um no futuro, manifeste-se nos comentários! 😉
Qual é o resumo da ópera, então? É aprender a detectar esses momentos específicos, colocá-los na balança, ponderar e examinar: “nessa fala, o que eu devo priorizar? O efeito ou as palavras?” Nunca se esqueça de que a consciência no ato tradutório é extremamente importante, não só para você como para o cliente.
Para encerrar nossa conversa de hoje, você já deve ter ouvido falar que “as palavras têm poder”, né? E tem mesmo. Se você parar para pensar, muito desse poder se dá justamente através dos efeitos que elas causam em nós. Palavras podem levantar o nosso ânimo, nos fazer sentir pena, nos fazer odiar alguém ou até mesmo nos destruir por dentro.
Como já disse, a palavra é importante sim e tem o seu peso, mas do que adianta manter a palavra se o efeito que ela provoca se perde? Obviamente cada caso é um caso e cada fala é uma fala, mas é fundamental que o tradutor da área audiovisual entenda e consiga discernir cada vez mais ao longo da sua trajetória quando o efeito se sobrepõe a palavra, seja no aspecto macro ou micro das produções audiovisuais.
Eu espero que você tenha gostado do post de hoje. Um grande abraço, sinta-se à vontade para deixar os seus comentários, e até o próximo post! 😉
Lílian
2 de março de 2018Achei muito bacana o artigo. Em um livro sobre a tradução de humor, da Marta Rosas, ela chama esse técnica (de focar no efeito) de tradução funcional. Muito legal. Ah, em tempo: só dá uma revisada aí no verbo assistir… acho que saiu sem querer sem a preposição (em “Assista abaixo (a) um trechinho”). Parabéns!! Adorei.
Lílian
2 de março de 2018Perdão, “essa técnica”. Digitei errado…rs
Paulo Noriega
3 de março de 2018Oi, Lilian. Que bom que você gostou. Sim, sim, isso de focar mais no efeito vem da linha funcionalista. Exatamente. Muito obrigado pela correção, realmente passou batido. =) Grande abraço e obrigado pelo comentário.
Laís
3 de março de 2018Isso sobre o efeito da piada no público me lembrou uma ocasião, não muito tempo atrás, quando estava com meus irmãos mais novos assistindo à animação Zootopia. Na cena da piada que o Nick conta para a preguiça, sobre os pingreens. No momento nenhum dos dois entendeu, já que, só faz sentido imediato se o espectador souber inglês. Daí a sua questão sobre fidelidade e literalidade.
Daniela Reis
3 de março de 2018Muito bom, Paulo! Queria que você fizesse um post só sobre comédia, pode ser? 🙂
Realmente traduzir humor não é nada fácil.
Beijão!
Paulo Noriega
9 de março de 2018Vai ter post de comédias, sim, Dany! =) Obrigado pelo seu prestígio de sempre. Beijo grande. =*
Alessandra
5 de março de 2018“Fidelidade não é sinônimo de literalidade”. Registrado!
Paulo Noriega
9 de março de 2018=))
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