O post do Traduzindo a Dublagem desta última sexta-feira do mês de março traz mais uma reflexão, fruto de discussões e comentários que tenho visto nos últimos meses, principalmente na rede social mais badalada do momento em que todos precisam dar suas opiniões (captou? rs). O título do post já pode dar algumas pistas do que vou abordar, mas vamos com calma. Pronto pro nosso papo de hoje?
Se há algo que foi ficando cada vez mais claro na minha prática tradutória é que eu não traduzo para mim. Todas as modalidades de tradução se destinam a alguém ou, em muitos casos, a vários “alguéns”. Sei que parece o óbvio ululante, mas acredito que alguns colegas estejam se esquecendo disso. Não só os tradutores para dublagem, como os para legendas, os técnicos, os literários, os localizadores de jogos, enfim, todos esses profissionais tão distintos, mas, ao mesmo tempo, tão próximos, têm como objetivo fazer com que os produtos e obras que caiam em suas mãos cheguem para o público da melhor forma possível.
Vale lembrar que há tradutores que não consomem aquilo que traduzem, logo é preciso pensar sempre em quem serão os principais consumidores. Sabemos que, dependendo do produto ou da obra, seu impacto pode ser fenomenal e fazer muito sucesso como os grandes jogos de videogame, as séries de sucesso da Netflix ou as grandes séries literárias que têm muito apelo junto ao público jovem.
Por conta das redes sociais, mais do que nunca, ficamos em contato com a mentalidade de ambos os lados da moeda, tanto do público consumidor, quanto dos profissionais da tradução. Contudo, o que vem me chamando a atenção é o caráter de alguns comentários de colegas de ofício que, a meu ver, têm um tom, no mínimo, elitista e que, basicamente, parecem sempre partir de algum dos pressupostos a seguir: “Se eu entendo, por que os outros não vão entender?” ou “mas isso é tão básico, é óbvio que todos vão entender.”
Novamente, voltamos à questão do óbvio. O meu óbvio pode não ser o seu óbvio, não é verdade? Quando se toca nessa questão, o óbvio costuma se tratar do uso de palavras em inglês, sendo que já existem traduções mais do que consagradas na nossa língua. O inglês está ficando cada vez mais “comum” e vejo isso das mais variadas formas no nosso dia a dia. Entretanto, ser “comum” não significa ser “acessível”, ainda mais para todos os brasileiros nesse país de dimensão continental.
Eu, assim como muitos dos meus colegas, tivemos o privilégio de ter estudado uma língua estrangeira. Muitos amigos meus são fluentes em até mais de uma, mas, como bem sabemos, o conteúdo estrangeiro de um filme ou de um livro, por exemplo, precisa ser transmitido na língua-alvo que, no nosso caso, é o português do Brasil.
Sinto que, cada vez mais, a língua de partida, principalmente o inglês, está sendo cada vez mais endeusada, ao passo que o português está tendendo a ficar um pouco de lado e com suas estruturas e expressões forçadamente curvadas às do inglês. É um fenômeno que, na realidade, ocorre em outros idiomas também, mas, acima de qualquer coisa, meu intuito com este post é trazer esse fato para o nosso consciente e fazer o seguinte alerta: não podemos ficar presos em nossas bolhas sociais e entre os nossos, quando há um país composto de pessoas que não são fluentes em inglês, nem em espanhol, nem em francês, etc… Infelizmente, a realidade é que temos muitos brasileiros que mal dominam o próprio idioma. Se o profissional de tradução tem sua língua materna como instrumento de trabalho, a meu ver, a responsabilidade aumenta em relação ao que ele faz com ela e como ele decide manejá-la em seu ofício.
Voltando ao começo do post, não é à toa que na formação de tradutores, sempre se fala de público-alvo, ou seja, é importantíssimo saber para quem é destinado o projeto que esse profissional tem em mãos. Como sabemos, há diversos grupos sociais com diferentes faixas etárias e alguns desses grupos estão até mais habituados a ouvir certos termos em inglês mesmo, como o público ligado na indústria da moda. No entanto, existem áreas como a empresarial, de marketing e de design, por exemplo, que acabam usando palavras estrangeiras de forma desnecessária, como os famosos “job”, “budget” e “deadline”.
Não me entenda mal, não sou contra a língua inglesa gratuitamente, até porque se eu fosse, não conviveria com ela todos os dias em meu ofício. O que desejo apontar aqui é que tudo tem o seu lugar, e a língua não foge disso. Esse endeusamento do idioma estrangeiro está acontecendo sim e, pelo que já vi de alguns colegas meus de profissão, tal fenômeno está tomando conta deles também, mesmo que de forma mais tímida e silenciosa. Cada profissional da tradução precisa conhecer muito bem a sua área de atuação e o perfil do público para o qual seu segmento tradutório se destina, mas não com base em achismos e pressupostos, pois é aí que mora o perigo.
Por exemplo, o meu segmento é a tradução para dublagem, inserida na tradução audiovisual. Por conta disso, e pelos poucos recursos de apoio para veicular a mensagem que essa modalidade apresenta, a mensagem e o conteúdo do original precisam ser claros e imediatos, ou seja, preciso medir muito bem o que eu devo deixar em inglês. O telespectador precisa entender o que foi dito, então por que eu deveria manter uma palavra em inglês, se ela já tem uma tradução para o português?
O intuito não só da dublagem, como da tradução como um todo, não é justamente aproximarmos o que vem de fora para os nossos falantes da língua portuguesa? 😉 Volto a repetir: não parta do pressuposto de que todos sabem coisas que para você podem ser básicas e elementares, porque eu garanto: não é a realidade de muitas pessoas desse Brasilzão em que vivemos.
Por conta do convívio que temos com outros amigos e familiares bilíngues, às vezes, podemos cair na ilusão de que todos são como nós, mas não é verdade. Fora da bolha, a realidade é outra, e eu acredito que, enquanto profissional desse ofício, minhas palavras precisam chegar ao maior número possível de pessoas, do Rio Grande do Sul ao Acre. Para mim, essa forma de tocar e alcançar outros brasileiros se dá através do uso apropriado da nossa língua, o português do Brasil, afinal, é ela que nos une.
Termino a nossa conversa de hoje com o título do post: não traduza para si, e sim para o outro. Conheça bem esse outro e as necessidades dele. Pense que ele precisa de você para acessar o máximo de conteúdo do livro, jogo, filme, documento, seja lá o que você, tradutor, tiver em mãos.
Talvez você já tenha ouvido falar da comparação do tradutor com um construtor de pontes. Pessoalmente, acho uma comparação muito bonita e pertinente, mas vale lembrar que uma ponte não pode ser construída de qualquer jeito, não é? Sendo assim, eu te convido: vamos nos esforçar para criarmos pontes cada vez mais sólidas para quem precisa delas? 😉 Um grande abraço e até o próximo post!
José Luiz Corrêa da Silva
31 de março de 2018Excelente reflexão. Vou aproveitar o tema é sempre que possível tratar dele com meus alunos na disciplina teoria e prática da tradução. Já havia me deparado com essa temática, enquanto elaborava uma apresentação sobre o “consumo” da tradução, cujo título foi: você traduz para quem? No debate que seguiu, ficamos com o seguinte consenso: traduzimos para o público ou leitor-alvo, na cultura de recepção deles, mas com o grau de exigência como se “eu” fosse um desses leitores.
Parabéns pelo texto e pela reflexão.
Paulo Noriega
31 de março de 2018Muito obrigado pelo prestígio de sempre, José! Fico muito feliz que meus textos contribuam para suas aulas e para os seus alunos. Fico muito contente. Grande abraço!
Viviane Andrade
3 de abril de 2018O trecho “Sinto que, cada vez mais, a língua de partida, principalmente o inglês, está sendo cada vez mais endeusada, ao passo que o português está tendendo a ficar um pouco de lado e com suas estruturas e expressões forçadamente curvadas às do inglês” me chamou muito a atenção. Tenho percebido que algumas palavras tem sido “forçadas” pra dentro do português, exemplo realizar como sinônimo de “realize”, acessar = “access”, etc. Realmente não faz sentido. Se já estão usando na língua falada, daqui a pouco vão querer colocar na escrita.
Obrigada pelo post, ótimo como sempre. Procuro sempre esmiuçar e “traduzir” minha visão de mundo de forma bem clara (tenho um amigo que diz que sou professora em tudo que faço) e concordo com você. Ver esta ideia aplicada à tradução foi importante pra mim. Sempre aprendo com você. Forte abraço!
Paulo Noriega
4 de abril de 2018Que bom que está sempre por aqui, Viviane. =) Fico feliz por ver que meus posts te ajudam em suas reflexões. Beijo grande!
Deixe um comentário