O Traduzindo a Dublagem volta com um guest post diretamente das celas da prisão de Litchfield, a prisão mais famosa da Netflix. Hoje estreia a última temporada de uma das principais séries dessa grande empresa de streaming, Orange is the new black. Para coroar esse momento, convidei minha querida colega e amiga, Fabiana Poppius, responsável por assinar a tradução da maioria das temporadas, para contar um pouco sobre a sua trajetória com essa série complexa que a acompanhou durante anos. Vamos conferir? 😉

Fabiana atua na área da tradução para dublagem desde 2013, após realizar um curso com sua mestra (e minha também) Dilma Machado. Desde então, fez alguns cursos de dublagem, já que também é atriz, e uma especialização em tradução inglês-português pela Estácio. Já traduziu diversos filmes, documentários, séries e desenhos, entre eles: Beasts of No Nation, O Bebê de Rosemary, Tig, Ugly Delicious, Masters of None, Creeped Out, Sillicon Valley, The Knick, Looking, Mister Robot, Tumble Leaf e Motown Magic e, é claro, Orange is the New Black, o tema do nosso post de hoje. Fique com esse relato fantástico e até o próximo post! 😉

Fabiana Poppius

“Produção da Netflix e dublada no MGE estúdios no Rio de Janeiro, Orange is the New Black conta a história de Piper Chapman, condenada a 18 meses de prisão por ter transportado dinheiro de droga, e toda a sua vivência na prisão. Comecei a traduzir a série a partir da terceira temporada em 2014 e fiquei até a sétima e última que estreia hoje, dia 26 de julho de 2019.

É sempre tenso pegar uma série de sucesso no meio do caminho, pois é muita pressão manter a qualidade do trabalho. Com Orange, como carinhosamente a chamamos, não foi diferente. O cliente me deu acesso a todos os episódios anteriores e aos scripts originais e traduzidos da segunda temporada. Fiz um trabalho preparatório de reconhecimento, pois eu só havia visto alguns episódios da série, mas posso dizer que virei fã e tenho o maior orgulho em traduzi-la.

Além disso, Orange passava por dois QCs (controles de qualidade). Com um deles, eu tinha contato direto. Com essa revisora, a mesma nas quatro temporadas, estabeleci uma relação muito bacana. Ela melhorou meu texto várias vezes e quebramos juntas a cabeça em várias soluções, sempre procurando achar a melhor para o público. Nosso trabalho é tão solitário e sempre nos deparamos com dúvidas, ou erramos mesmo, então ter uma revisão competente e precisa é super importante, especialmente quando ela não mexe no texto desnecessariamente. Foi uma parceria super produtiva.

Outra parceria fantástica foi com a nossa diretora de dublagem maravilhosa, Mônica Rossi, profissional que dispensa apresentações, e com quem aprendi muito através das dúvidas em relação à tradução, dos trechos que não ficaram tão claros e as alterações que ela ou os dubladores fizeram em estúdio. Conferir o script gravado acaba sendo um controle de qualidade a mais e uma forma de aprender, através das alterações, como melhorar o texto e me adaptar às especificidades dos dubladores. Divido com todos eles os louros da tradução.

Orange é uma série extremamente difícil de traduzir por vários aspectos. Apesar de a Piper ser a protagonista, muitas personagens elevaram-se ao status de principais, e cada uma tem um histórico bem diversificado e uma série de personagens secundários atreladas a elas. É preciso bastante atenção para não confundir e para lembrar-se de todos. Por sorte, tenho os glossários (além do meu próprio, temos um glossário oficial do cliente para manter consistência), a internet e os wikis das séries. No wiki desse projeto, por exemplo, há um resumo das histórias de cada personagem, suas relações e personalidades, o que me ajudou muito.

Normalmente uma série trata de um universo delimitado, social, etário e temático. Em Orange, isso é multiplicado: além do universo da prisão, temos uma grande variedade de outros universos com diferentes faixas etárias, classes sociais distintas e etnias múltiplas; pessoas que jamais conviveriam são forçadas a dividir um mesmo espaço, tornando tudo mais complexo. Temos as características do universo prisional, mas cada personagem tem sua história que remete a outro universo particular.

É uma série que exigiu muita pesquisa. Como é extremamente atual, ela usa uma linguagem com muitas palavras novas e gírias que, muitas vezes, só encontrava no Urban Dictionary, dicionário fundamental para a tradução. Isso quando você acha o termo… E o que você faz quando não acha? Vou pelo contexto, penso no que elas estão querendo dizer.

Às vezes, poucos minutos de vídeo demandam uma hora de pesquisa. Ela também é necessária pelo motivo do parágrafo anterior. Tive que pesquisar glossários de gírias de prisão, gírias de viciados em droga, questões jurídicas, costumes Amish; temas como racismo, machismo, religiosidade, intolerância, violência contra a mulher, loucura e o sistema carcerário.

Uma vez, comentei com a revisora que as roteiristas da série deveriam fazer um glossário de termos e palavras importantes e, quando muito novos, botar uma explicação. Afinal, elas deviam se lembrar que o produto vai para outros mercados e também porque, às vezes, uma palavra ou frase que não demos muita atenção, quando apareceu, traduzimos pelo sentido em português e, alguns episódios depois, ela é repetida ou vira uma frase que identifica a personagem e não pode ser uma frase/palavra comum. Daí tem que se pensar, criar novas soluções, pedir ajuda e refazer as gravações.

O fato de a série ser de comédia e drama ao mesmo tempo também dificulta. Tenho que estar sempre atenta ao tom que estou imprimindo ao texto. Parece que isso foi até confuso na hora de categorizá-la para o Emmy Awards. Quando ela pende para o lado cômico, tenho ali todas as dificuldades inerentes na tradução do humor, porém sem a pressão das claques gravadas rindo, graças a Deus!

Vou contar um caso que aconteceu na sexta temporada: uma personagem conta uma história em que há uma confusão entre o que um cliente pediu e o que ela entendeu. O cliente pede “a glass of ice” (um copo de gelo) e ela entendeu “a classifieds” (os classificados), que, em português, não rima nem um pouco. Eu troquei por “caramelo” e “copo de gelo”, pois ela conta que teve que sair do bar para comprar o jornal (e na minha versão, o caramelo). No último episódio, a história é retomada, mas não mais com palavras, aparece a imagem do que aconteceu. Eu pensei: “ih, fudeu” (não dá pra falar de Orange e não colocar um palavrão no texto, Paulo!). Tive que criar uma nova solução, e as atrizes tiveram que regravar. Ficou “chá gelado” e “classificado”, assim no singular mesmo.

Outra dificuldade é a quantidade absurda de spikes. Para quem não sabe, são aquelas vozes no meio do vozerio ditas em off, mas que são super audíveis (muitas vezes ininteligíveis). Já houve episódios com mais de cem deles! E dá-lhe imaginação. Isso aumenta o tempo de trabalho, às vezes, em vinte por cento. Muitos spikes foram inspirados em histórias que li no livro “Prisioneiras” de Dráuzio Varela, quando a ação se transferiu para a prisão de segurança máxima.

Apesar de o universo prisional brasileiro ser bem distinto do americano, há muitas semelhanças: nos motivos de encarceramento, nos muitos abandonos pela família, na criação de afetos homossexuais por quem antes não tinha essa orientação (“Gay for the stay, straight at the gate”- que traduzi como “Gay na prisão, hétero no portão” também acontece bastante por aqui). Além dos spikes, sempre que aparecia alguém vendo tevê, o som está sempre audível, embora nem sempre inteligível. Uma vez, estava passando um documentário sobre elefantes e só havia uma frase pequena no script e mais de dois minutos com voz da narradora em off. E lá fui eu procurar saber o maior número possível de informações sobre elefantes para criar um texto que pareça a narração de um documentário sobre o assunto, e isso porque já houve programas de receita, sobre borboletas, vídeos pornôs…

Só tenho a agradecer ao MGE Estúdios por esse presente. Aliás, tenho que aplaudir toda a equipe técnica e de produção da casa que fez um trabalho incrível para deixar a série com a dublagem linda que ela tem, além do trabalho dos dubladores e da direção, claro! Enfim, posso dizer que aprendi muito (e continuo aprendendo) com esse trabalho. Acho que a série toca em questões muito atuais e importantes e que dialogam muito com a nossa realidade.

Daqui pra frente tem spoiler (só até a 6 temporada, tá?), então quem nunca assistiu continue por sua própria conta. Não dá pra ver o noticiário do rapaz morto por um segurança de um supermercado no Rio de Janeiro e não se lembrar da morte da Poussey. Coisas bizarras que nunca imaginei, como a venda de calcinhas usadas pela internet, existem de verdade.

Houve uma escalada assustadora do encarceramento feminino também aqui no Brasil. Orange toca em muitas feridas: na dor de tantas prisões injustas, na dor do racismo, que se perpetua dentro da prisão, a escassez de perspectivas por falta de educação e oportunidades, as burrices da juventude inconsequente que podem estragar uma vida, os jogos de poder que, às vezes, transformam a vida dessas detentas num teatro de marionetes, a repetição de padrões num ciclo que quase nunca é quebrado e a violência institucional sofrida por elas; mas a série também fala de esperança na amizade, no amor e na possibilidade de mudança. Ficarei com saudade.”

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

3 Comentários

Priscila Bybyk

26 de julho de 2019

Muito obrigada por compartilhar conosco essa experiência incrível Fabiana! Também fui aluna da Dilma e estou começando na área. Parabéns pela inciativa do blog Paulo!

    Paulo Noriega

    8 de julho de 2020

    Obrigado, Priscila! =) Muito bom ter você por aqui!

Viviane

28 de julho de 2019

Minha nossa, que post fan-tas-ti-co!! Obrigada mil vezes, Paulo. Aprendi várias coisas.

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