O Setembro da Tradução aqui no Traduzindo a Dublagem continua a sua programação mais do que especial com o guest post do mês que, obviamente, só poderia ter sido escrito por um colega da tradução.
Quer conhecer mais um profissional do nosso mercado e que, de quebra, é um dos mais conceituados na língua espanhola? Siiiim, finalmente, consegui alguém da área do espanhol para compartilhar um pouco da sua experiência com você, meu querido leitor. Agora, sem mais delongas, vamos ao meu ilustre convidado que aceitou escrever para este mês tão especial para a comunidade tradutória.
O convidado da vez é Salmer Borges, tradutor de espanhol<>português. Durante 12 anos, morou em países falantes de espanhol e, durante esse tempo, estudou, trabalhou e viajou bastante pela América do Sul, o que lhe permitiu desenvolver fluência no idioma e acumular uma cultura bastante ampla sobre a América Latina. É formado em Letras Português-Espanhol pela Universidade Metodista de São Paulo e possui duas pós-graduações, uma em Tradução e outra em Interpretação de Conferências, pelas universidades Gama Filho e Estácio de Sá.
Seus conhecimentos sobre o espanhol, sua formação profissional e a bagagem cultural acumulada ao longo do tempo lhe abriram muitas portas no mundo da tradução quando voltou definitivamente para o Brasil, em 2005. Desde então, tem trilhado muitas áreas da tradução, principalmente, a audiovisual, traduzindo tanto para legendagem quanto para dublagem, mas também realizando traduções gerais e interpretação de conferências.
Aproveite o post e e não se esqueça de comentar, hein? Grande abraço! 😉
“Entrei para o mundo da tradução audiovisual em 2007, quando conheci o Bruno Murtinho, nos Jogos Pan-Americanos do Rio, em que trabalhamos juntos na tradução consecutiva do evento. Após muitos anos morando fora do Brasil, voltei em 2005 e comecei a procurar oportunidades para trabalhar como tradutor espanhol<>português. O Bruno me deu logo uma oportunidade na 4Estações, referência em legendagem no país, e também logo me encantei com o mundo da legendagem.
Comecei a me capacitar, treinar, buscar conhecimentos e hoje, 11 anos depois e com duas pós-graduações – em tradução e interpretação de conferências -, vivo exclusivamente de tradução (legendagem, dublagem, interpretação e tradução geral). Neste post, vou falar um pouco da diferença entre a tradução para legendagem e para dublagem, com foco na língua espanhola em ambas as modalidades. Vamos lá!
A tradução para legendas envolve mais aspectos do que simplesmente fazer uma tradução palavra por palavra de um filme, uma série, um documentário ou uma entrevista (aliás, nenhum tipo de tradução). Porém, nesse caso em particular, devido a considerações de tempo e espaço, é necessário levar em conta uma série de princípios, tanto na sua extensão quanto na sua estruturação, para que uma legenda possa ser lida e compreendida adequadamente, porque, se uma legenda não dá para ser lida, não é uma boa legenda, simples assim.
Nas traduções para legendas, é comum dar prioridade ao conteúdo sobre o estilo, o que resulta em um registro muito homogêneo, em que as diferenças entre os personagens quase não são marcadas linguisticamente. Outro fator a ser considerado é que as legendas devem ser sincronizadas com a sequência de imagens e com as falas. Porém aqui surge um problema: em uma obra audiovisual legendada, a velocidade com a qual o espectador lê uma legenda tende a ser menor do que a velocidade com a qual o personagem fala, o que representa um grande desafio para o tradutor.
Em legendagem, costuma-se aplicar a regra de que um espectador médio é capaz de ler e assimilar o conteúdo de uma legenda a uma velocidade de 15 caracteres por segundo (CPS), incluindo espaços e pontuação. Via de regra, as legendas nunca serão uma tradução completa de todas as falas da versão original, nem essa é sua função.
O que o tradutor desse ramo deve buscar é uma síntese da fala, respeitando o CPS e a quantidade máxima de caracteres que pode usar em cada legenda. Geralmente, no máximo, 32 por linha, com um máximo de duas linhas. No caso da Netflix, um dos principais novos clientes da área audiovisual, esse limite é de 42 caracteres por linha.
Na minha experiência com tradução para legendas português<>espanhol, já passei por incontáveis situações em que escuto o trecho, logo vem uma tradução linda à minha mente, mas logo também me deparo com o nosso inimigo: o CPS. Daí você começa a tirar daqui, tirar dali, até chegar a um resultado insatisfatório, muitas vezes. Aliás, se é verdade que a tradução é sempre um produto inacabado, acho que é mais ainda na tradução para legendas, porque, em prol da velocidade de leitura, temos que reduzir um texto lindo a, muitas vezes, uma frase que, via de regra, é vista como uma tradução errada pelo telespectador.
Erros à parte, esses “erros” podem se dever ao nosso inimigo CPS, e não ao desconhecimento, deslize, descuido ou cansaço do tradutor, como muitos gostam de dizer por aí. Esse execrável CPS foi particularmente desafiador na tradução da série Isabel, la Reina de Castilla, que, com sua linguagem riquíssima e ambientada no século 15, porém falada, na maioria das vezes, a uma velocidade muito acima do CPS máximo permitido, me obrigava a reformular o texto até sobrar só um fragmento daquela primeira e linda tradução que vinha à minha mente. Ossos do ofício. Um bom tradutor desse segmento é aquele que consegue fazer muito com pouco e que consegue encontrar outras formas de dizer a mesma coisa e, para isso, há muitas técnicas que devem ser aprendidas.
Durante esses 10 anos de tradução para legendagem, aprendi e aprendo muito, com cada projeto. Tenho a satisfação de ter legendado grandes obras latino-americanas e espanholas, entre as quais, muitas de Almodóvar (Todo sobre tu madre, Volver, Hable con ella, Àtame…), muitas com o mestre Ricardo Darín (El hijo de la Novia, Carrancho, Elefante Blanco, Kamchatka, El aura, El Secreto de sus Ojos, Tesis sobre un homicidio).
Legendei também outras produções maravilhosas, como La Reina del Sur, El Ministerio del Tiempo, e também fiz muitas versões de filmes brasileiros. Cada obra apresenta sua dificuldade específica, exige muita pesquisa e também seguimento de manuais de produtoras e canais de televisão. Por outro lado, essa abordagem não vale para a tradução para dublagem, uma vez que não há limites de CPS, porém há outros desafios: a temida sincronia labial, a métrica e a naturalidade.
Falando especificamente da tradução espanhol<>português, embora ambos os idiomas tenham uma grande semelhança entre si, fala-se de cerca de 70%, mas estes outros 30% fazem toda a diferença, ainda mais em se tratando da tradução para dublagem, uma vez que orações “praticamente iguais” têm uma estrutura totalmente diferente. Ex: “No se llamaba Javier su hijo”. Tradução: “Não se chamava Javier seu filho”) Só que não!
Seria ótimo se essa frase soasse natural em português, mas soa muito artificial. Há uma sincronia labial quase perfeita, métrica perfeita, porém não há naturalidade. Para que essa oração soe natural, devemos traduzi-la da seguinte forma: “O filho dela/dele não se chamava Javier”. E É aqui que o tradutor entra em pânico! No caso da tradução de espanhol para português, 80% do tempo! Isso porque, no espanhol, é muito comum o verbo ficar antes do sujeito (“¿Qué hace Juan aquí?”); além disso, há outra situação que estraga toda a sincronia labial: os pronomes pessoais. (“Este auto es suyo” / “Este carro é seu”). Acontece que, embora a oração esteja correta em português, não soa muito natural e pode gerar ambiguidade. Nesse caso, a tradução adequada é (e, para alguns clientes, obrigatória): “Este carro é dele.”
Apenas com esses dois exemplos, nossa tradução já está toda “bagunçada”, e então surge a dúvida cruel: o que priorizar? A sincronia labial ou a naturalidade? Eu sempre priorizo a naturalidade, e isso, em minha opinião, para além de quaisquer discussões, é o que difere uma boa tradução de uma má tradução. O discurso precisa sempre soar natural para o ouvinte. É claro que deve haver métrica, não se pode traduzir “gracias” por “muito obrigado”, pois não há métrica, e nunca haverá sincronia labial entre “gracias” e “obrigado”, mas há métrica e é natural. Não há dúvida de que o bom tradutor sempre busca opções para que a sincronia labial fique a melhor possível, mas nem sempre consegue encontrar uma solução perfeita.
Além disso, entre os idiomas abordados nesse post, há palavras idênticas e com significados idênticos, mas que podem não ser muito usadas ou não soarem tão naturais, como, por exemplo, “bella” e “bela”. Em espanhol, usa-se muito “bella”, já no português não se usa tanto “bela”. “¡Qué bella mujer!” > “Que bela mulher!” > “Que linda mulher!” > “Que mulher linda!”. Esta última é a mais natural, não é verdade? Porém, em uma oração tão simples e com tradução possível quase direta, ao optarmos pela naturalidade, perdemos toda a sincronia labial. Oh, desgraça!
O maior desafio que já tive na minha carreira como tradutor para dublagem foi em Love and Sin, uma novela turca traduzida por turcos não tradutores, na maioria, para o português, para depois essa tradução ser adaptada por um grupo de tradutores, entre as vítimas, eu! Foi muito desafiador, porque na maioria das vezes a tradução dava uma ideia sobre o que se passava, mas não havia métrica, então tínhamos que “encher linguiça” até alcançar a métrica necessária, e olha que conseguimos! Foi um trabalho em que todos aprenderam muito: os turcos, que se esforçaram ao máximo, os tradutores, os diretores de dublagem e os dubladores.
Confesso que, no começo, não achava que seria possível, mas depois a gente pega o jeito e vai embora! É disto que se trata a nossa profissão, desafios constantes, e só quem se dispõe a trilhar esse caminho de pedras conseguirá oferecer um trabalho com a qualidade que o mercado exige. É difícil conseguir a primeira oportunidade, mas é ainda mais difícil conseguir a segunda. Portanto, temos que sempre dar o nosso máximo em todos os trabalhos que realizamos.
Outro aspecto que costuma ser um desafio para os tradutores são as inconsistências nos roteiros. Sim, isso acontece, coisas que não fazem o menor sentido! Principalmente em novelas, que costumam ter cerca de 160 capítulos. E você, como tradutor, vai entregar uma tradução feiosa, com ideias que não fazem sentido e que não se complementam, ou vai resolver o problema?
Por isso, certo Borges, que não é Salmer Borges, talvez tenha dito: “O original é infiel à tradução”. Ou muitas vezes vocês não acham que suas traduções ficam melhores que o original? Com certeza, e isso acontece em todas as áreas da tradução. Portanto, o nosso ofício como tradutores consiste em entregar um trabalho coerente e que soe com naturalidade no nosso idioma. Forte abraço!”
Viviane
21 de setembro de 2018Obrigada a este Borges que passou um pouco de seu conhecimento e experiência pra nós. Obrigada, Paulo, por fazer este esforço por nós que amamos o blog.
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