Você, assim como eu, com certeza já deve ter ouvido em algum momento da vida aquele “filho da mãe”, quando sabia muito bem o que foi dito no original, não é verdade? Não é de hoje que a censura presente na dublagem é algo que incomoda muita gente e acaba se tornando motivo de chacota entre as pessoas. Entretanto, não dá para culpá-las, pois isso é algo bastante evidente e irritante, principalmente porque o público em geral desconhece os motivos para tal. Mas afinal, de quem é a culpa? E como fica o tradutor no meio dessa história? É sobre isso que vamos conversar hoje. 😉

Justamente pelo processo de tradução/adaptação iniciar no tradutor, dependendo do produto, essa questão da censura pode ser mais ou menos presente. Por via de regra, cabe ao tradutor, sempre que possível, amenizar xingamentos e linguagem chula em geral. Com isso, recaímos em uma questão muito comentada no mundo da tradução: sabe aquela famosa frase “Traduttore, Traditore” (“tradutor, traidor”)? Pois é. Tratando-se de censura, essa frase, infelizmente, acaba se aplicando a tradução para dublagem, já que é algo outorgado para nós, tradutores. Viu só, gente? Como várias outras coisas que acontecem nesse ramo, a culpa não é dos estúdios, nem dos dubladores e tão pouco dos tradutores, e sim dos clientes/distribuidoras que encomendam as dublagens das produções.

Após ingressar na área como tradutor, fui tentando entender por que isso é tão recorrente. Pelo que consegui averiguar, todos os produtos audiovisuais dublados e transmitidos pelos canais de dia ou de tarde e que também possam ser vistos pelo público geral, incluindo crianças, devem ser amenizados. Isso se deve pelo fato de que, quando um produto dublado vai ser exibido na TV aberta, a distribuidora tem uma preocupação financeira nas mãos: a de fazer uma versão mais leve e branda quanto a linguagem usada e outra mais liberal com palavras mais fortes, caso haja na versão original.

Em geral, o resultado final que temos é a versão mais completa e sem censura presente no DVD/Bluray do produto em questão, enquanto a versão mais leve é a que quase sempre vai para ser exibida na televisão. Dessa maneira, a emissora consegue uma censura mais branda e pode exibir seu produto em um horário mais cedo e consequentemente mais lucrativo.  Entretanto, não são todas as distribuidoras que têm essa prática de dublar duas versões. Ao examinar o produto a ser traduzido, é sempre aconselhável que o tradutor pergunte para o estúdio qual é o canal em que o produto será exibido e como deve proceder, caso detecte um alto índice de xingamentos e palavras chulas.

Para ilustrar um pouco melhor, o desenho animado é um gênero do audiovisual em que essa questão da censura é muito presente. Aqui no Brasil, existe uma política forte de não permitir que crianças tenham contato com palavreado e palavras fortes no geral, e por isso, canais como Nickelodeon, Disney Channel e Gloob são bem rígidos e têm uma lista de palavras proibidas com as quais o tradutor deve se preocupar, caso apareçam durante a tradução. Há duas colunas nessa lista: na da esquerda ficam as palavras de baixo calão, e na da direita as respectivas soluções amenizadas para cada uma delas. Em casos assim, realmente não há espaço para diálogo e não resta opção a não ser “abaixar a cabeça”, pois se o tradutor passar batido pela lista, haverá, fatalmente, retakes na produção.

Isso acaba por acarretar em prejuízo desnecessário para o estúdio, e a culpa cairá sobre o tradutor que não seguiu a lista. Entretanto, vale lembrar que existem canais que adotam uma postura extremamente oposta, como a HBO que pede para usar e abusar dos xingamentos. Um bom exemplo é o da série Game of Thrones (Guerra dos Tronos), marcada por uma linguagem bem chula e cuja instrução máxima é mantê-la na íntegra. Basta conferir a versão dublada da série e você vai saber do que estou falando 😉

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Tirando esses casos mencionados por mim, talvez a essa altura, você possa estar se perguntando: “Mas Paulo, é sempre 8 ou 80? Não há nada que possa ser feito e não se pode tentar um diálogo com o cliente?” E eu respondo: “nem sempre todas as batalhas são perdidas, pois cada caso é um caso e sempre gosto de citar um em especial.”

Em 2013, tive que traduzir um filme chamado Home of the Brave (A volta dos bravos) para o canal Viva da Globosat. O enredo acompanha a jornada de soldados americanos durante a guerra do Iraque e como cada um lida com os traumas causados em decorrência dela após retornarem para casa. Os 15 minutos iniciais são os piores, pois é justamente a parte da guerra e, obviamente, onde ocorre a maior incidência de xingamentos. Filmes de guerra como esse se caracterizam não só por palavreados, como também pelas imagens chocarem muito mais do que qualquer coisa que seja dita, ou seja,  é simplesmente ridículo tentar amenizar situações como essa.

Assim que recebi o projeto, mandei um e-mail detalhado para o diretor responsável do estúdio, no qual expliquei a situação e fiquei positivamente surpreso em receber o aval para proceder como eu julgasse melhor. Após a parte da guerra, não há tantas ocorrências de linguagem chula, então passei a amenizar um pouco o vocabulário dependendo da cena, mas a parte em que ela realmente era necessária foi mantida. Isso foi o mais importante.

Sempre gosto de citar esse caso, pois nem sempre tudo é preto no branco. Dependendo do canal e do produto que o tradutor tenha nas mãos, com diálogo, é possível chegar a um denominador comum. Dessa forma, o produto mantém sua essência e quem sai ganhando é o público. Espero que tenha gostado, deixe sua opinião sobre esse assunto tão controverso e sugestões para temas futuros. Até o próximo post! 😉

 

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Home of the Brave – Exemplo de filme em que a imagem choca muito mais do que as palavras

 

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

2 Comentários

Fagnner

24 de junho de 2016

Muito interessante, acho que o mais importante é manter a essência do produto e se na cena do filme/série/etc o xingamento for relevante, que ele fique. Além de você traduzir as falas, ainda tem a análise semiótica do produto.

    pfcnoriega

    24 de junho de 2016

    Com certeza, Fagnner. Cada caso é um caso e cabe ao tradutor, dentro das possibilidades, lutar para manter a essência do produto que tem nas mãos. Abração 😉

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