Mais de uma vez, já ouvi alguns comentários como: “Poxa, mas a adaptação/versão musical daquela música não ficou boa” ou “As músicas daquele desenho deveriam ter ficado no original”. Obviamente que podemos discordar dos resultados das adaptações/versões musicais que ocorrem no âmbito musical brasileiro, independentemente do segmento como o teatro musical ou até mesmo a dublagem, afinal, é como dizem: gosto é gosto.
A verdade é que não existe unanimidade quando se trata de adaptações/versões musicais, e nem é possível prever a recepção do público, mas, acima de tudo, temos que respeitar as preferências de cada um, não é mesmo? Só que o foco do post de hoje é ir além do simples “eu gosto”/”eu não gosto” de adaptações e versões, e tentar entender os motivos que levam a esse fenômeno, especialmente na área da dublagem. Vamos examinar por que esse processo é justificável e praticado em diversos países do mundo até hoje? Se você for um daqueles que torce o nariz para esse assunto, pega minha mão e vem comigo! 😉
Principalmente quando se trata de animações, sejam ocidentais ou orientais, é inegável que o Brasil tem um histórico de adaptação/versão das canções nelas presentes. Na verdade, não só o Brasil, como também outros países que abraçaram a dublagem, como França, Itália, Espanha e Alemanha.
Essa prática de adaptação/versão é rotineira nos estúdios de dublagem quando chegam produções em que há músicas presentes nelas e que, de uma forma ou de outra, contribuem para o andamento da narrativa que está sendo contada. Vale lembrar que na legendagem é muito comum ocorrer uma tradução literal, ignorando assim as características das músicas na língua-fonte, características essas que, afinal de contas, fazem as músicas serem o que são. Há diversas características, mas, acredito que as principais que eu posso citar seriam: a prosódia, as rimas, a melodia e a métrica.
Mas por que esses elementos acabam sendo tão importantes no momento de se fazer uma boa adaptação/versão para a nossa língua? Simplesmente porque não é fácil moldar a sua língua a uma música que foi criada para funcionar em toda a sua potencialidade no idioma em que ela foi concebida e que levou em conta esses mesmos elementos. Posso garantir que é preciso ter uma forte bagagem musical para conseguir ser bem-sucedido nessa empreitada.
Apenas para recapitular o que eu disse no post da semana passada, na cadeia musical dentro dos estúdios de dublagem, temos os versionistas/letristas e os diretores musicais, os profissionais encarregados dessa missão hercúlea de adaptar/verter as músicas para o nosso idioma. Antes deles, o tradutor para dublagem tem o papel de traduzir as canções literalmente e sinalizar os momentos musicais no script de dublagem dos diálogos. Entendido o que foi dito até aqui, chegamos à pergunta que não quer calar do post de hoje: afinal, quais são os motivos que justificam e legitimam as adaptações/versões na nossa dublagem, principalmente nas animações?
Muitos pensam que o primeiro e único motivo é por se tratar de um gênero voltado para o público infantil e assim as crianças conseguem aproveitar e entender a obra como um todo. Isso não deixa de ser verdade, porque vamos combinar que assistir ao seu personagem favorito falar em português e, DO NADA, ele começa a cantar em inglês ou em outro idioma e depois volta a falar em português, como se nada tivesse acontecido, as crianças achariam estranho, concorda? Fora que elas perderiam momentos importantes da trama, já que as músicas não têm uma função meramente decorativa.
“Ah, mas e se tivesse legenda?”, você pode perguntar, e eu respondo: as crianças não têm o ritmo de leitura previsto pelas legendas, mas, pessoalmente, eu acho que vai além disso. O fato é que a magia proporcionada pela dublagem seria quebrada, o que atrapalharia a experiência de assistir e aproveitar as obras dubladas em sua totalidade.
Algo que sempre gosto de salientar é que a tradução nos proporciona experiências. Seria até mentira dizer que assistir a uma mesma obra dublada e legendada proporciona a mesma experiência, mas posso dizer, sem sombra de dúvida, que ambas são válidas. É possível aproveitar uma obra legendada e também desfrutar de outra experiência assistindo a essa mesma obra dublada, só que na dublagem é preciso haver um zelo maior. E que zelo seria esse? O de não deixar que a magia de que os personagens estão falando português se perder. Uma espécie de magia de abstração, digamos. Como sabemos, os momentos musicais das produções têm o papel de contar a trama, logo as músicas não são meros adereços, e as mensagens presentes nelas precisam ser passadas de alguma forma.
Eu gostaria de citar um exemplo com uma animação que gosto muito chamada José, o Rei dos Sonhos, da Dreamworks, adaptação da famosa história bíblica de José, o filho caçula que é vendido pelos próprios irmãos como escravo até se tornar o faraó do Egito. Na canção que abre o filme chamada “Em ti o milagre se fez”(“Miracle Child”, em inglês), vemos a trama inicial que vai, aos poucos, sendo estabelecida e que terá repercussão nos acontecimentos posteriores.
Essa canção tem mais de três minutos. Através dela, vemos como José foi crescendo sendo o filho preferido de seus pais, após o seu nascimento considerado impossível, e como ele se acha alguém especial e que sempre estará protegido por seus pais e por Deus, ao passo que a inveja e o ciúme de seus irmãos crescem cada vez mais, o que culminará na sua venda como escravo. Como deixar tudo isso em inglês e só depois os personagens começarem a falar em português? Complicado, né?
Por fim, chegamos ao segundo motivo, que pode não parecer tão óbvio quanto o primeiro ou, pelo menos, não tão evidente. A verdade é que, em paralelo, existe um fator mercadológico envolvido para entendermos a prática de adaptação/versão das músicas nas produções dubladas. Por mais que tenham sido compostas para as obras audiovisuais e fazerem parte de suas narrativas, a indústria fonográfica é um segmento à parte e enxerga as músicas como produtos independentes e passíveis de comercialização. É para isso que temos os CDs, não é verdade?
Existem CDs para praticamente tudo que você pensar. No começo da explosão dos animes (desenhos japoneses) aqui no Brasil, por exemplo, foram lançados CDs com músicas autorais de Cavaleiros do Zodíaco e Pokémon para promover essas animações! Como se esquecer dos CDs dos clássicos da Disney que são lançados com as músicas vertidas/adaptadas? E aquele seu filme que tem a trilha sonora que você adora com vários gêneros musicais? E aquela novela da Globo com a música-tema que embala o amor dos protagonistas e que você adora ouvir?
Pois é, em todos esses casos, por mais que originalmente estejam ligadas à obras audiovisuais, o fenômeno de adaptação/versão está atrelado a estratégias de marketing e venda, já que as músicas acabam funcionando como subprodutos independentes, acarretando assim uma demanda por parte dos estúdios de dublagem e das próprias distribuidoras.
Seguindo essa lógica, quem compra um CD espera ouvir o quê? Boas músicas. Afinal, ninguém quer ouvir uma tradução literal que, simplesmente, não funcionaria, não é verdade? É preciso que essas canções obtenham êxito comercial e, para isso, elas precisam do processo de adaptação/versão, de modo a ficarem mais próximas de nós e de passarem a impressão de que foram concebidas no nosso idioma. Naturalmente, para se obter esse êxito, os elementos inerentes às músicas como a prosódia, a rima, a melodia e a métrica não só precisam, como devem ser levados em consideração.
Gostou do post de hoje? Qual é a sua opinião sobre o processo de adaptação/versão musical na nossa dublagem? Não se esqueça de deixar o seu comentário, um grande abraço e até o próximo post do NOVEMBRO MUSICAL aqui no Traduzindo a Dublagem! 😉
Deixe um comentário