Nunca me esqueço da primeira vez em que peguei o bonde andando como tradutor para dublagem (principalmente porque foi no mesmo ano em que iniciei na área). Um belo dia, estava eu ainda na faculdade, quando um dos meus clientes me ligou em caráter de urgência. O trabalho? Traduzir um episódio da série Brothers and Sisters, dublagem que foi exibida no canal GNT na época. A partir de qual temporada? Da terceira. Já havia um tradutor na série, correto? Não só um, mas dois tradutores! O prazo? Três dias para entregar o episódio. Se eu já conhecia a série? Sabia que era famosa e tinha até amigos que assistiam, mas eu mesmo nunca havia visto um episódio. E agora, José Paulo? Pois é, é sobre esse tipo de situação que vamos conversar hoje, e você vai ver que, na verdade, enfrentar esse tipo de situação é muito mais frequente do que se pensa. 😉
Assumir uma produção que não começou a ser traduzida por você é algo muito comum de ocorrer no mundo da dublagem, apesar de não ser o ideal. Depois desse caso com a série Brothers and Sisters, ocorreram outros ao longo da minha carreira, e por ter aprendido muito com essas situações, vou tentar compartilhar no post de hoje um pouco desses aprendizados.
Voltando ao caso Brothers and Sisters, assim que cheguei em casa após o contato do cliente, mandei um e-mail pedindo o contato do diretor de dublagem, Duda Espinoza. Era impossível assistir as duas temporadas anteriores para tentar pegar o espírito da série, e essa é a primeira lição que quero deixar: o tempo é algo crucial para nós, tradutores, e em casos que temos poucos dias para entregar um episódio no susto, é humanamente impossível assistir a tudo que aconteceu na produção até o ponto da história em que você foi chamado para traduzir.
Entretanto, não é por isso que se deve ficar de braços cruzados, não é? Dentro das minhas possibilidades, consegui ligar para o Duda e pedir para que ele me contasse um pouco sobre a série e os termos-chave mais recorrentes. Depois de me familiarizar minimamente com o produto, fui buscar informações na internet sobre os personagens e a trama de modo geral. Em seguida, liguei para um amigo meu que amava a série, e ele pode me contar melhor sobre aqueles personagens que acabariam por me acompanhar até as últimas duas temporadas que encerram os dramas da família Walker.
Depois do estranhamento inicial, os conflitos e angústias vividos por aquela família acabaram se tornando meus conflitos e angústias também. Se tem uma coisa que aprendi ao longo da tradução de produções que têm uma continuidade é que não tem como não se afeiçoar por aqueles personagens, mesmo que fossem estranhos para você no começo do processo. Outro aspecto importante foi manter contato com os meus colegas tradutores que estavam traduzindo parte dos episódios comigo, Mário Menezes e Daniela Madruga. Lembro que trocávamos e-mails com as soluções tradutórias dadas por cada um, de modo a manter o máximo da coerência e consistência da série nas temporadas que faltavam. Esse tipo de atitude é fundamental para a obra e falei mais a respeito dela em um dos últimos posts aqui do blog!
Outro caso que gosto de usar para ilustrar esse tipo de situação foi quando traduzi durante um tempo um desenho chamado Sanjay e Craig, exibido na Nickelodeon. Tal como Brothers and Sisters, essa animação chegou de forma inesperada. Fui acionado para traduzir o 11º e o 12º episódios da primeira temporada, pois havia acontecido algum problema com o tradutor anterior. O estúdio me enviou os episódios antigos como modelo e dei uma lida neles para pescar algum termo-chave, ver se os nomes dos personagens haviam sofrido algum tipo de adaptação, enfim… fiz uma análise geral do produto. Após entregar esses episódios e passado algum tempo, chegou o 13º, o 14º, o 15º… e quando me dei por mim, havia me tornado o tradutor oficial do desenho e fiquei até mais ou menos a metade da segunda temporada. Foi um período muito gostoso e até hoje bate uma saudade das aventuras loucas do garoto Sanjay e sua cobra de estimação Craig.
Nesse segundo caso mais especificamente, eu conseguia ver alguns episódios já dublados na TV, já que chegavam de forma bem mais esporádica para a tradução. Só pra você ter uma ideia, às vezes, chegavam só dois por mês. Com uma margem de tempo maior, foi possível fazer isso. E por que eu bato tanto nessa tecla? Afinal, o que você ganha vendo o que já foi dublado, se nem foi você quem iniciou a tradução daquela produção? O que se ganha é o fato de você pescar alguns dos termos-chave e conseguir observar o tom que o produto já tinha, de modo com que se possa manter esse tom na sua tradução.
Mas Paulo, o que seria o tom de um produto? Quando falo de tom, me refiro ao maior ou menor nível de formalidade adotado naquela produção audiovisual. No caso dessa animação, a pegada que já havia sido estabelecida era extremamente informal e, quando se pega o bonde andando, não adianta querer mudar mais esse tom. Se a produção inicia com um tradutor, será ele o responsável por dar o tom inicial dela. Como não fui eu, não adiantava querer mudá-lo quando assumi, então é preciso se adequar ao que aquele produto emana e se esforçar ao máximo para pegar o espírito dele.
Após falar sobre essas duas produções, se eu pudesse compilar os principais aprendizados que tive com elas e as outras que traduzi ao longo desses anos, listaria os seguintes:
1 – Busque os termos-chave e recorrentes já estabelecidos, seja com o diretor da série, com o(s) tradutor(es) que está(ão) com a produção desde o começo ou até mesmo assistindo aos episódios dublados já exibidos, caso haja tempo.
2 – Caso haja outro(s) tradutor(es) atuando na tradução da produção em questão com você, mantenham contato e compartilhem os termos novos que forem surgindo e as soluções dadas por cada um.
3 – Mantenha a sintonia e o diálogo com o diretor de dublagem. Sempre!
Como deu para notar, pegar o bonde andando não é fácil, mas para embarcar nele e fazer boa viagem, é necessário se preparar para que ela possa fluir da melhor forma possível. Espero que tenha gostado dessas dicas e não se esqueça de deixar o seu comentário. Grande abraço e até o próximo post! 😉
Ligia Ribeiro
22 de outubro de 2016Oi, Paulo. Estou achando que você instalou uma câmera aqui em casa porque tudo o que penso e falo em voz alta, logo em seguida, você posta no seu site… rs.
Ótima matéria. Eu estou traduzindo dois projetos que são parecidos com o que você mencionou. Um deles é uma série que divido com outro colega. Para um melhor alinhamento, elaboramos um glossário que os dois podem seguir, incluir ou fazer alterações e que nos serve de apoio. Outra coisa também é quando surgem dúvidas. Trocamos e-mail com algumas sugestões para uma determinada tradução, exatamente como você falou.
E o mais importante é o tom que você também abordou. Cada tradutor pode dar um determinado tom, por exemplo, suavizando falas ou fazendo muitas adaptações, ou até mesmo usando expressões e gírias mais pesadas, diferente do usado pelo outro tradutor. Aí, fica um pouco estranho para quem está assistindo.
A outra série que estou traduzindo é um desenho que caiu no meu colo (lindo presente), com vários episódios já traduzidos anteriormente. O que fiz foi ver o filme desse desenho e ler o episódio da tradutora anterior para poder ter uma base para prosseguir com a tradução.
Você acaba criando uma sintonia com os personagens. É um cumplicidade que só quem traduz esse gênero pode sentir. Eu não vejo a hora de ter uma série só “minha” para que possa brincar com os personagens (mesmo não sendo a escritora), dar aquele tom que segue durante vários episódios. Deve ser muito legal.
Fantástico! Parabéns pelo excelente artigo, Paulo.
pfcnoriega
24 de outubro de 2016Que bom que o blog continua te ajudando, Ligia. Obrigado por sempre comentar por aqui, viu? 😉 Um grande abraço e que mais produções apareçam pra você!
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