Realizar uma tradução para dublagem de excelência está longe de ser uma tarefa fácil, pois diversos fatores precisam ser levados em conta. Principalmente por conta dos nossos prazos serem, em geral, bastante apertados, é comum termos apenas alguns dias para conseguir entregar um trabalho com qualidade para os nossos clientes.

Em um dos primeiros posts aqui no blog, explorei a fundo a figura do tradutor desta modalidade e citei as preocupações que ele precisa ter ao longo do seu trabalho. Contudo, no post de hoje, quero dar foco ao método QOQ, que constitui os três alicerces para iniciar qualquer tradução para dublagem. Quer saber que método é esse? É ele que vamos explorar no post de hoje! 😉

Aprendi esse método lááá em 2010 com a minha grande mentora e amiga tradutora e dubladora, Dilma Machado. E no que constitui esse método? Bom, a sigla é a abreviação de Quando? Onde? Quem?, que são os três grandes fatores que precisam ser examinados antes de começar a sua tradução. Esse método não só é válido para a área de dublagem, como para outras também, a exemplo da própria legendagem e da tradução literária.

Vamos examinar juntos esses três alicerces? Basicamente, são três perguntas que você precisa responder para situar a produção que você estiver traduzindo. Pronto? Vamos lá!

1) QUANDO SE PASSA A PRODUÇÃO?

Após identificar o gênero da produção com que você está lidando (desenho, filme, reality show, documentário, série…), o primeiro grande fator que é preciso levar em conta é o fator temporal. Situar o produto no tempo é crucial para uma tradução bem feita, uma vez que a forma como os personagens irão se expressar e se comunicar será um reflexo da época em que estiverem, concorda? Por isso analisar a época é tão importante.

Afinal, a produção que será traduzida é de época? Se for, se passa há algumas décadas ou há alguns séculos? É uma produção bíblica? Talvez contemporânea? Ou quiçá se passa em uma era distante no futuro?

Você percebe que, para cada uma das situações acima, os personagens usarão registros diferentes e se comunicarão de formas diferentes? E outra coisa: sabe aqueles filmes característicos por terem flashbacks? Pois é. Em casos assim, é preciso ficar esperto! Se um personagem idoso, por exemplo, se lembra de sua adolescência, seu modo de falar vai mudar inevitavelmente. Não perca isso de vista!

Mary of Nazareth: filmes bíblicos sempre exigem um extremo cuidado com a linguagem utilizada

2) ONDE SE PASSA A PRODUÇÃO?

Após responder a primeira grande questão, chega a hora de se ter uma visão macroscópica da produção e, para tal, é preciso observar o(s) local(is)/ambiente(s) presentes nela. O produto se passa em meio à guerra? Ou dentro de um presídio cheio de criminosos? Em um tribunal? Ou talvez em locais chiques da alta sociedade?

Tal como o alicerce anterior, tomar nota de onde se passa a produção é igualmente importante, pois revela mais dos personagens que frequentam/permeiam os locais presentes nela. Na realidade, mais do que isso. Ao detectar o “onde”, automaticamente implica em um emprego de diferentes variedades de registro para os personagens e também em uma escolha de maior ou menor grau de formalidade que deve ser dada pelo tradutor para caracterizá-los.

Em suma, a ordem aqui é: adequar os personagens aos ambientes que frequentam. Com mais essa pergunta respondida, vamos para a terceira e última!

Law and Order: série que passa por vários ambientes. O tribunal, obviamente, é o principal deles.

3) QUEM SÃO OS PERSONAGENS DA PRODUÇÃO?

O terceiro e último alicerce recai sobre os personagens da produção a ser traduzida. Aqui acredito que uma das palavras-chave é essência. E por quê? Porque o tradutor precisa estar muito atento ao original e, através da análise do texto/script original e do que a imagem está lhe mostrando, conseguir captar a essência dos personagens.

Quais que têm características marcantes? Tem algum que tem um jeito de falar mais rebuscado? Tem algum personagem gago? Tem algum que vive falando gírias? Tem algum que só fala em rimas? É preciso tomar nota dessas peculiaridades para poder mantê-las na dublagem, de modo que a essência não se perca. O público-alvo da produção também precisa ser levado em consideração neste momento, pois, para cada gênero, espera-se que haja personagens condizentes e críveis.

Fatores como a idade e o relacionamento interpessoal estabelecido entre os personagens contam bastante nessa análise, não é mesmo? Afinal, um adolescente não fala igual a um idoso, por exemplo. Uma rainha não fala igual a um plebeu. Da mesma forma, um súdito se dirige ao seu rei com respeito, mas talvez não se dirija com o mesmo respeito à sua esposa e ao seu filho.

Para cada situação, um mesmo personagem pode se expressar e se portar de formas diferentes, dependendo de onde estiver e com quem estiver interagindo. Como exemplos de relacionamentos interpessoais, pense, por exemplo, em interações cotidianas como esposa/marido, professor/aluno e médico/paciente. Como você os expressaria na nossa realidade brasileira? Fica o dever de casa! 😉

Ainda neste campo do “quem” e para citar mais um exemplo, podemos ter um homem que seja juiz e pai de família e, para cada um desses papeis, ele vai se portar e se expressar de um jeito. Isso é o que chamamos de adequação linguística, algo que é guiado pelo contexto das cenas da produção. Obviamente, as pistas e o caminho estão presentes nas falas originais e na própria imagem, mas cabe ao tradutor conseguir transmitir tudo isso de forma crível para a sua língua-alvo, no nosso caso, o português do Brasil.

Por fim, mas não menos importante, o tradutor para dublagem precisa sempre pensar na forma mais natural de se traduzir/adaptar as falas para o seu idioma. Lembre-se sempre que o texto final, após ser encaminhado para o estúdio de dublagem, será interpretado pelos dubladores. Esse texto é para ser oral, tal qual um texto para uma peça de teatro, por exemplo. Com isso em mente, pelo menos metade do caminho já vai ter sido percorrido na busca de uma tradução para dublagem de excelência.

Voltron: o defensor lendário: desenho que conta com personagens e registros diversos

Com essas três perguntas respondidas, garanto que sua tradução vai fluir muito bem. Obviamente que não é tão fácil quanto parece, pois, na vida real, muitas vezes não regulamos e nem prestamos atenção ao jeito que falamos e nos expressamos. Afinal, nossa fala é espontânea, não é verdade? Só que na dublagem não é assim que a banda toca. O tradutor vai pensar em como traduzir/adaptar cada falinha da produção no seu idioma, mas precisa fazer com que essas falas soem naturais.

É um processo contínuo de aprimoramento para se chegar a esse efeito máximo de oralidade, assunto que já abordei em um post específico aqui no blog, mas nada que não possa ser aperfeiçoado com a prática.

Para encerrar, é importantíssimo nunca perder o método QOQ de vista, principalmente em casos de produções que tenham uma continuidade, como uma série ou desenho, pois os parâmetros estabelecidos no começo do projeto precisam ser levados até o final, ok? Como já disse em um post anterior, coesão e coerência são fundamentais para que as produções saiam da melhor forma possível, e o tradutor tem um grande papel nisso! Espero que tenha gostado do post de hoje e não se esqueça de deixar o seu comentário. Um grande abraço e até sexta-feira que vem! 😉

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

6 Comentários

Luiz Souza

18 de março de 2017

Como sempre, ótimo post, Paulo! Isso é uma coisa que eu sempre fiz automática e inconscientemente, mas na dublagem sou obrigado a fazer ainda mais. Como eu não conhecia o nome da técnica, eu simplesmente chamava de “se esse maluco fosse brasileiro, como que ele ia falar?” E geralmente dá certo. Bom, agora eu sei o nome da técnica! haha Da hora, Paulo!

    pfcnoriega

    18 de março de 2017

    Que bom que gostou, Luiz. Sim, é um método muito simples, mas eficaz de se ter em mente que aprendi com minha querida amiga/mentora Dilma Machado. =) Agora ele está formalizado e eternizado aqui no blog como uma espécie de “apostilinha” on-line. rs Abraços!

Paulinha Vianna

18 de março de 2017

Oi Pauli! Parabéns pelo post! Gostei de como ficou explicado, e tenho que dizer que o QOQ é realmente mto importante. Um dos primeiros trabalhos que fiz, foi um documentário, e uma das coisas que temos que nos atentar é com relação ao tempo verbal dessas produções, né?
Enfim, gosto mto do blog e espero que continue!
Um grande bjo, Paulinha

    pfcnoriega

    19 de março de 2017

    Oi, Paulinha! Sempre bom te ver aqui e que bom que gostou do post e acompanha meu blog! Se depender de mim, ele vai continuar aí anos a fio! Sempre com conteúdo novo e diversificado. Beijo grande =*

Ligia Ribeiro

19 de março de 2017

Dessa vez não fui a primeira a comentar, mas não posso deixar de fazê-lo. Outro post muito bom. Parabéns, Paulo! Como você disse, o ideal é pesquisar sobre a série, filme, desenho, etc. Porém, às vezes, você acaba não tendo tempo suficiente para uma pesquisa mais abrangente. O projeto chega na sua mão e você tem um prazo curto para entregá-lo. O que é uma pena porque se tivéssemos mais tempo, poderíamos fazer uma análise mais detalhada. De qualquer maneira, o que você colocou é extremamente importante. Parabéns! Beijo.

    pfcnoriega

    20 de março de 2017

    Obrigado pelo apoio de sempre, Ligia!! O prazo está sempre contra a gente, mas devemos sempre fazer o melhor no prazo que nos dão, né? É difícil, mas é muito prazeroso.

Deixar comentário

Deixe um comentário