Traduzir é um ofício complexo e cada modalidade tradutória tem suas próprias particularidades, características e desafios. Como já falei em posts anteriores aqui no blog, para se ter uma boa tradução para dublagem, é necessário sinalizar diversos elementos no roteiro traduzido. Há vários aspectos que devem ser considerados e destacados pelo tradutor que, muitas vezes, trabalha com prazos muito apertados.
No entanto, o principal instrumento com o qual o profissional desse segmento lida é a oralidade, ou seja, ele deve elaborar falas que soem naturais em sua língua, tais quais soam na língua-fonte. A oralidade é o elemento-chave de qualquer produção que venha a ser dublada e, se não for utilizada de forma correta, o objetivo não será atingido. Pode parecer simples lidar com ela à primeira vista, mas vamos debater um pouco sobre esse aspecto para o qual não existe fórmula pronta e que constitui um desafio muito maior do que aparenta.
Em um primeiro momento, devemos entender o principal aspecto que diz respeito a oralidade dentro da dublagem em si: ela é pré-fabricada. Com isso, quero dizer que todas as falas vistas nas séries, longas e desenhos em seus idiomas originais não são espontâneas, apesar de darem essa impressão. Existe alguém que concebeu aquelas falas para todos aqueles personagens e que tentou atribuir uma oralidade condizente para cada um, de modo a não provocar estranheza nos ouvintes e conseguir passar a impressão de serem espontâneas. Vale lembrar que, em contrapartida, também existem os realities, e nessas produções não se espera que exista um roteiro, logo, as falas não são pré-fabricadas.
Passei a prestar mais atenção a isso, quando tive de elaborar uma comunicação para apresentar na XXXV Semana do Tradutor, evento que ocorre todos os anos em São José do Rio Preto, com um grande amigo meu, João Artur Souza. Existe uma ótima definição de oralidade pré-fabricada dada pelo tradutor e teórico europeu, Frederic Chaume, mas o João me mostrou na época uma outra que considero ideal: a da teórica Rocío Bãnos, atuante na University College London (UCL).
Em uma de suas palestras, ela deu a seguinte definição que segue traduzida por nós: “Oralidade pré-fabricada é um ponto num continuum entre o discurso espontâneo e o planejado, que possui qualidades de ambos os extremos. A tradução para dublagem, portanto, visa a espontaneidade e a naturalidade, como se fosse o discurso falado, embora seja escrita e planejada.”
Entendido isso, vemos que reproduzir esse efeito de naturalidade e espontaneidade de fala na língua-alvo já representa um desafio por si só. Agora como pegar essas falas que já foram pré-concebidas em uma língua e pré-fabricar essas mesmas falas na sua e de modo que soe o mais natural possível? Pois é! É esse o principal desafio enfrentado pelos tradutores desse ramo.
E afinal, porque esse aspecto é tão crucial para que possamos ter uma dublagem de qualidade? Porque acredito que a dublagem tem um caráter funcional, ou seja, ela tem que tentar passar o máximo da experiência presente nos diálogos originais. Em suma, a dublagem deve funcionar por si, ela deve se bastar, independentemente de sua contraparte original.
Ao longo da minha carreira, percebi algo curioso e que, até hoje, acontece às vezes. É o fato de parar para pensar: “é assim mesmo que a gente fala?” Isso costuma ocorrer, por exemplo, quando lido com as expressões idiomáticas da língua portuguesa, pois elas são completamente arbitrárias. Em resumo, não há um motivo lógico para falarmos daquela forma. Simplesmente falamos e sabemos que aquilo é perfeitamente natural e aceitável. É engraçado, pois o ofício da tradução para dublagem faz o tradutor realmente prestar atenção a elementos da forma como os nativos se comunicam e que, muitas vezes, passa batido por nós.
Lidar com isso é um constante aprendizado e não há uma verdade absoluta sobre como manejar a oralidade de sua língua. Eu poderia escrever diversos posts ou até mesmo um artigo inteiro debatendo essa questão, que acaba sendo controversa muitas vezes. Entretanto, queria chamar atenção apenas para três aspectos que acredito ser de extrema importância para a execução de uma boa tradução que, afinal de contas, é a base de qualquer produção dublada:
Onde fica a gramática da língua nisso tudo? Como falar de gramática se, a rigor, muitas vezes, nós violamos essa mesma gramática quando nos comunicamos uns com os outros? Como já disse, não existe uma verdade absoluta a respeito disso, então darei apenas o meu posicionamento.
Como profissional, acredito ser possível produzir falas naturais sem violar gratuitamente certos aspectos da gramática da língua portuguesa. Para definir o quanto da norma culta será utilizado ao longo de uma tradução, é necessário examinar os personagens e ver como eles se portariam e falariam no nosso idioma. Noções de sintaxe e conjugação verbal, por exemplo, são elementos que devem ser levados em conta e, caso haja algum desvio da gramática, tem que haver um motivo.
Soar natural é diferente de violar gratuitamente um aspecto gramatical, logo, o bom tradutor precisa conhecer a gramática da língua desde o registro mais alto até o mais subpadrão para poder atribuir o efeito de oralidade apropriado para cada personagem. Se houver desvios gramaticais, que seja porque há uma finalidade, e não por desconhecimento. Entenda os personagens, atribua o registro mais adequado para cada um e saiba embasar suas escolhas.
Sendo bastante propagado na literatura e um dos principais conceitos defendido pelo professor universitário e tradutor literário Paulo Henriques Britto em seu livro A Tradução Literária, o princípio do marcado pelo marcado e o não marcado pelo não marcado, concebido pelo teórico Meschonnic, pode ser aplicado perfeitamente na tradução para a dublagem. Ao assistir a produção em seu idioma original, os diálogos já nos apontam as marcas características do discurso utilizado pelos personagens.
Por isso, se um personagem é um típico adolescente que fala diversas gírias no seu cotidiano, esse aspecto deve ser mantido na tradução. Se um personagem for gago, por exemplo, esse traço também deve ser mantido na dublagem. Em resumo, qualquer peculiaridade ou traço característico de fala presente em algum personagem, essa mesma peculiaridade ou traço deve se manter no ato da tradução para dublagem. O que for marcado deve se manter, e o que não for marcado, não deve transparecer.
Em uma dissertação de mestrado que li há alguns anos, vi uma citação da teórica Mona Baker que expressa muito bem um conflito constante na tradução como um todo e que se aplica muito bem a tradução para dublagem: “é uma escolha difícil decidir entre o que é típico (natural) e o que é preciso (exato).” Com isso, quero dizer que a fidelidade ao original é importante, mas o compromisso com a naturalidade da sua língua também é. Encontrar esse equilíbrio é uma tarefa árdua e, muitas vezes, a escolha final irá pender para um dos dois lados.
Vale lembrar também que nem todas as soluções finais que serão exibidas virão do tradutor, uma vez que os dubladores, em conjunto com os diretores de dublagem, também são profissionais que atuam e contribuem nas falas das produções audiovisuais dubladas.
E você, o que acha dessa questão tão importante na tradução para dublagem? Fique à vontade para deixar o seu comentário e não perca o post da semana que vem. Até lá! 😉
Ligia Ribeiro
26 de agosto de 2016Oi, Paulo. Mais um artigo muito interessante e que, certamente, é um das dúvidas mais marcantes de um tradutor que está iniciando na dublagem. Quem é de Letras ou já atua há bastante tempo como tradutor literário sente dificuldade nesse gênero de tradução porque ele, muitas vezes, expressa a linguagem do cotidiano. E todos nós sabemos que a gramática, nesse caso, desce ladeira abaixo. Por isso, como dizer para alguém, que tem todo o cuidado de preservar o português correto, para deixar isso de lado e escrever de forma gramaticalmente oposta porque o personagem fala dessa forma? É complicado e com isso perde-se a fluidez do texto. Por isso, que muitos dubladores acham a tradução pesada, truncada e são obrigados a fazer alterações. Ótimo artigo para reflexão! Parabéns!
pfcnoriega
28 de agosto de 2016Obrigado, querida =) Que bom que sempre gosta do que escrevo. Continue sempre firme e forte aqui. Beijo grande!
Nayara Ferreira
27 de agosto de 2016Muito bom esse tema! E tem muita coisa para ser discutida. Porque algumas vezes ficamos muito presos em algumas regras que os clientes nos passam que impedem essa oralidade.
pfcnoriega
28 de agosto de 2016Verdade, Nayara! Óbvio que, se o cliente passar regras expressas, não adianta querer enfrentar muito. No entanto, acho que quanto mais liberdade o tradutor puder ter para realizar o seu trabalho da melhor forma, o produto sai ganhando. E os telespectadores também, óbvio 😉
Guga Almeida
1 de março de 2017Ótimo texto.
Realmente examinar o personagem é uma atividade primordial, principalmente quando esse personagem, navega por diversas situações e se adequa a elas e ao contexto da cena. É um cuidado que se faz necessário sempre.
Uma mesma personagem jovem, que fala corriqueiramente de forma mais coloquial, pode falar assim com amigos; mãe; pessoas próximas, mas se ela está em uma situação outra, longe da sua zona de conforto, ela poderá mudar a forma como se comporta e seu registro oral, e esse cuidado do roteirista, deve ser preservado no dublado, pra se manter as características essenciais da personagem.
É um ótimo ponto de análise comparativa entre as mais diversas produções e suas finalidades, o que infelizmente, alguns clientes não compreendem.
Estendo essa discussão também para o campo dos games, onde a maioria das empresas não tem alguém que conheça bem o português. Logo bandidos e mocinhos, ricaços e favelados, subalternos e patrões, falam da mesma forma, pois neste processo de pasteurização é excluída a riqueza da língua, suas peculiaridades, e as formas de expressões populares.
pfcnoriega
1 de março de 2017Ótimos argumentos, Guga. Essa análise é fundamental e é algo que o profissional tradutor vai lapidando e refinando com o tempo. Óbvio que é preciso sempre estar atento para não cair em inconsistências, mas vale lembrar que o trabalho do tradutor nesse quesito precisa ser mantido em estúdio, por isso que é importante haver uma afinidade constante entre tradutores e diretores. No entanto, quanto mais afiado e esperto o tradutor estiver, o produto já terá um pontapé excelente, especialmente no que se refere às questões de oralidade.
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