Há alguns anos, li uma dissertação de mestrado sobre dublagem e tradução para dublagem para escrever a minha monografia da matéria de Estudos da Tradução durante o meu bacharelado. No decorrer da leitura, me deparei com um trecho que jamais esqueci e que me fez refletir sobre a minha atuação na área da tradução para dublagem, área em que eu já dava os meus primeiros passos. Foi um trechinho muito breve, mas que fez uma grande diferença pra mim e o carrego comigo até hoje.
Quer saber como essa minha leitura pode te ajudar a aperfeiçoar o seu trabalho como tradutor? Pode ficar tranquilo, pois mesmo trazendo para a área da tradução para dublagem, o que li se aplica à tradução como um todo. Vamos lá? 😉
A dissertação que li chama-se Diretor de dublagem e dublador – os co-autores da tradução para dublagem, de Regina Helena Ribeiro Mendes. Além de dissertar sobre todo o processo de dublagem, inclusive observando sessões de dublagem em estúdio, a autora se propõe a examinar se as estratégias de tradução dadas pela teórica e tradutora Mona Baker são aplicadas na área da dublagem no momento das gravações, mesmo que empiricamente.
Em um dado momento, Mona Baker diz que, muitas vezes, o ideal da tradução perfeita não acontece, pois a tradução envolve uma “tensão”, ou seja, uma escolha difícil entre o que é típico ou natural para a língua alvo, no nosso caso, o português do Brasil, e o que é preciso ou exato. Ao ler esse trechinho, vi ali formulado o grande conflito que existia dentro de mim, ainda mais naquela época em que eu estava iniciando a minha prática tradutória. Foi quando eu trouxe para o meu consciente essa tensão existente entre a precisão tradutória e a naturalidade da nossa língua, algo que na dublagem acontece a cada fala que preciso traduzir/adaptar.
Posso afirmar sem medo que a cada fala esse desafio é colocado para o tradutor e, diante disso, sempre aparecem os mesmos questionamentos: “Pra qual lado eu vou?”, “Vou pender mais para a naturalidade ou para a precisão tradutória?”, “É possível chegar a um equilíbrio?”. Confesso que a sensação, muitas vezes, é a de sempre estar diante de uma bifurcação.
No entanto, pelo que venho observado ao longo da minha carreira, de modo geral, desde um desenho de 23 minutos a um longa de 90 minutos, haverá falas que se enquadram nos três casos. Com isso quero dizer que, ao fazer um apanhado de uma produção traduzida, haverá falas mais precisas em relação ao conteúdo presente no original, falas que pendem mais para a naturalidade, mas sacrificando algo no original, e outras em que se consegue esse equilíbrio.
Nesse eterno dilema, a opinião dos dubladores nesse assunto é extremamente importante e, algo que já vi vários desses profissionais dizendo, além das minhas próprias conversas em estúdio com dubladores e diretores, é que a naturalidade das falas é uma máxima na dublagem. Dessa forma, minha tendência costuma ser pender mais para a naturalidade do que para a precisão tradutória nos casos em que esse equilíbrio não possa ser feito.
Vale lembrar que meu objetivo enquanto tradutor desse segmento é fazer o telespectador acreditar e sentir verdade nos diálogos que se sucedem diante dele. Assim sendo, caso a fala precise ser mexida em prol de uma maior naturalidade, assim será, pois os diálogos precisam atingir o maior grau possível de naturalidade e também, como a prática me mostrou várias vezes, nem sempre pode-se ter o melhor dos dois mundos.
Quanto mais o tempo passa, para mim fica cada vez mais claro que traduzir é um exercício constante de concessões e de escolhas, principalmente na dublagem que, além do que já disse anteriormente, é sempre preciso lembrar que a tradução tem um caráter restritivo. Só esse fato já implica que as informações presentes na produção original dificilmente conseguirão ser transmitidas em sua totalidade na nossa língua, pois, como sabemos, nossas palavras são, na maioria, maiores do que as da língua inglesa. Essa é a verdade, quer você aceite ou não.
Ah, e ser uma modalidade de tradução restritiva não é regalia da dublagem, pois o mesmo princípio se aplica à legendagem, à localização de games e à tradução de quadrinhos e mangás, por exemplo. Só o que muda é o fator determinante da restrição, desde a boca dos personagens na dublagem até o tamanho dos balões nas histórias em quadrinhos.
O tradutor precisa estar ciente de que um filtro de informações precisa ser feito, e é inegável que a ausência de certas palavras não fazem diferença na tradução, algo que não é só defendido por Baker, a teórica contemplada na dissertação que li, como por outros teóricos também. Entretanto, o tradutor, obviamente, precisa saber discernir as informações mais relevantes para a história que está traduzindo. Quem quiser ler mais a fundo sobre esse caráter restritivo da tradução, escrevi um post muito legal no blog da empresa LBM no ano passado. Depois dá uma conferidinha lá. 😉
Ah, e como se não bastasse o embate entre a precisão tradutória e a naturalidade com a questão da restrição na jogada, ainda existe o sincronismo labial pra embolar o meio de campo. Por conta dele, é preciso analisar se as palavras escolhidas na tradução ficarão boas ou não na boca dos personagens e, por conta disso, alterações textuais também são feitas.
Por fim, para encerrar o post de hoje, gostaria de comentar algo que tem sido extremamente importante para mim na minha prática tradutória e que vem me ajudado muito na resolução desse eterno embate entre naturalidade e precisão na área da dublagem: entendimento cênico. Quando o tradutor consegue ter uma compreensão completa e minuciosa do que está se passando e consegue captar tudo que a cena está transmitindo, suas escolhas tradutórias serão influenciadas de forma positiva, levando-o além da literalidade e em busca do que seria melhor para a cena na nossa língua.
E o que quero dizer com “melhor para a cena na nossa língua”? Muitas vezes, uma palavra ou expressão utilizada na língua de partida, seja o inglês ou outra qualquer, que tenha uma certa carga emocional ou cômica, por exemplo, não vai passar a mesma sensação e a mesma carga para os telespectadores brasileiros, caso seja traduzida literalmente ou caso haja um apego excessivo ao original. Com isso, não digo que o tradutor deve mudar as falas propositalmente e ao seu bel-prazer, mas ter essa compreensão como um todo é crucial para uma boa tradução/adaptação.
Gostou do post de hoje? Não se esqueça de deixar o seu comentário e compartilhar as suas experiências. Ah, e caso tenha se interessado pela dissertação que mencionei, ela pode ser baixada aqui! Como recomendação extra, terminei recentemente uma leitura muito interessante que trata essa questão da naturalidade. O livro se chama O jeito que a gente diz, da autora Stella O Gagnin, lançado pela Disal Editora. Um grande abraço e até o próximo post! 😉
José Luiz Corrêa da Silva
12 de janeiro de 2018Como sempre, um texto muito bem elaborado e que nos leva a pensar além do conteúdo. Essa bifurcação aprece em nossa frente a cada curva do caminho. Pra que lado ir? Que porta abrir? A resposta não é única e nem será uma verdade absoluta. Tive uma professora que disse para a minha turma, ao perguntarmos sobre o quanto devíamos ser fiéis ao texto de partida. A resposta foi um “as close as possible, as far as necessary” tão sonoro que até hoje ecoa nos meus ouvidos. Uso muito com meus alunos traduzir piadas e aí eles veem o quanto devem se afastar do texto para não perder o leitor, digo a piada.
Paulo Noriega
16 de janeiro de 2018José, excelentes colocações, e adorei a fala da sua professora. Maravilhosa e muito suscinta. Obrigado por estar sempre aqui!
Viviane Andrade
16 de fevereiro de 2018Que aula! Obrigada por compartilhar seu conhecimento e experiência com a gente. Além do conteúdo em só, riquíssimo, A gente vê como um bom profissional precisa estudar. Eu, que amo estudar e aprender coisas Novas, me senti encorajada! Valeu!
Paulo Noriega
16 de fevereiro de 2018Viviane, muito obrigado pelo carinho e fico feliz em estar agregando conhecimento para você e os demais leitores. Espero te ver sempre por aqui. Beijo grande!
Viviane Andrade
16 de fevereiro de 2018Também apreciei o comentário do José Luiz e de sua professora.
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