É sempre bom reforçar que o tradutor, independentemente do seu campo de atuação, não é o dono das produções e obras com as quais ele lida. Pensemos por um minuto: depois do tradutor literário, por quantas mãos um livro não passa até chegar às livrarias? Quantos profissionais não se debruçam sobre a localização de um jogo até o dia do seu lançamento? E agora, por quantos profissionais diferentes, contando o tradutor, o diretor de dublagem, o operador de áudio, os dubladores escalados e o mixador, não passam as mais diversas produções audiovisuais até suas respectivas estreias?

Diante disso, este primeiro post dedicado ao mês do tradutor no Traduzindo a Dublagem visa abordar algo que acontece em vários segmentos tradutórios, com foco, obviamente, na tradução para dublagem: as alterações feitas na tradução. Em minhas palestras, duas perguntas relacionadas costumam surgir com frequência: “Paulo, os dubladores mudam o seu texto no estúdio? Eles podem mudar o que você traduziu ou adaptou?” Pois bem, é justamente sobre isso que vamos conversar, então, se quiser saber a resposta para essas perguntas, vem comigo! 😉

Primeiro de tudo, é preciso frisar que, praticamente em qualquer modalidade tradutória que você pense, existe uma cadeia de profissionais que vão atuar no produto/obra em questão, seja um livro, um jogo de celular, uma produção audiovisual, um quadrinho ou um documento técnico. Em outras palavras, ocorre uma sobreposição de camadas e de etapas que resultarão no produto final que esteja sendo traduzido/adaptado.

Como mencionei no começo do post, quando um tradutor termina de traduzir um livro, por exemplo, o texto tem muitas chances de passar por, pelo menos, três profissionais diferentes (o copidesque, o editor e o revisor final), então é praticamente certo de que o texto enviado à editora no começo do processo não será o mesmo que os leitores verão quando o livro chegar às livrarias.

Na dublagem não é diferente, a questão é que essa sobreposição de camadas é de outra natureza, uma natureza artística e cênica, afinal são atores que, apenas com a sua voz, precisam interpretar da forma mais verdadeira possível, cada um dando o seu toque e se ajustando aos perfis dos personagens e ao texto traduzido diante deles.

Dublador em estúdio

Como já falei algumas vezes aqui no blog, fazer uma tradução para dublagem de excelência não é fácil, pois ela envolve diversos elementos para os quais o bom tradutor precisa se atentar. Em muitos casos, por melhor que seja esse profissional, a intervenção dos dubladores e do diretor de dublagem se faz extremamente necessária e agora você vai saber o porquê. Listei abaixo alguns motivos que justificam essas intervenções e que eu, particularmente, considero os mais recorrentes:

1) Mudanças em casos de falas muito longas ou muito curtas

Assim como a legendagem, a tradução para dublagem é uma modalidade restritiva, o que impede, muitas vezes, o conteúdo presente no original ser transmitido na íntegra no momento da tradução. Dessa forma, é importantíssimo que o tradutor para dublagem não traduza integralmente as falas originais, pois, na maioria das vezes, os dubladores vão precisar encurtá-las em estúdio, de modo que caibam na boca dos personagens.

Por exemplo, as palavras da nossa língua portuguesa, em comparação com a inglesa, são maiores e o nosso ritmo de fala não é tão acelerado quanto os falantes dos Estados Unidos. Levando em conta esses dois fatores, exige-se um filtro de informações no momento da tradução. Um tradutor que se preocupe com isso ajuda muito os dubladores, pode acreditar! No entanto, dominar essa técnica de deixar as falas próximas de um encaixe na boca dos personagens é algo que costuma levar tempo, mas é possível, eu garanto! 😉

Pare: sua tradução está muito longa!

2) Mudanças em prol de um sincronismo labial melhor

Ao falar de sincronismo labial, me refiro mais à questão da abertura e do fechamento da boca dos personagens, especialmente quando ela fecha, que costuma ser o momento mais evidente para o telespectador. Um exemplo clássico é ouvir o som de “a” na dublagem, sendo que a boca do original faz o som de “o”. Fica estranho, né? Justamente para evitar essa estranheza, mudanças textuais são feitas para se conseguir um sincronismo mais perfeito.

Entretanto, existem as questões fonéticas inerentes a todos os idiomas, o que acaba, muitas vezes, atrapalhando o sincronismo, como o fato de que a língua inglesa tem um número maior de palavras que terminam em consoante. Já o nosso português brasileiro, em contrapartida, conta com muito mais palavras terminadas em vogal, vide as inúmeras palavras em inglês que, ao serem traduzidas, ganham vogal por aqui, como nos casos de “ball”, “doll”, “car”, “exotic”, “erotic”, “circus”e “bomb”.

3) Mudanças em prol de naturalidade nas falas

Segundo vários diretores com os quais trabalhei ao longo dos anos, uma das principais reclamações diz respeito a textos “engessados”. Na dublagem, a tradução precisa ser a mais natural possível, pois ela será interpretada pelos dubladores. Ter os ouvidos sempre apurados e atentos para obter essa naturalidade é crucial e, segundo os diretores, parece que muitos tradutores se esquecem disso.

Pode parecer algo simples à primeira vista, mas posso assegurar que não é fácil conseguir esse efeito de oralidade tão almejado. Isso se dá por algumas razões, seja por conta do medo de não seguir a norma culta da língua portuguesa (que sabemos que não acontece em muitas instâncias da língua falada), ou até mesmo por conta da constante influência, principalmente do inglês, sobre o nosso idioma. E qual é o principal efeito disso? Pra mim, nossos ouvidos tendem a ser afetados de alguma forma, nos afastando do que é mais natural para nós, brasileiros.

4) Mudanças por questões cênicas e artísticas

Como já mencionei, por mais que as produções audiovisuais não sejam teatrais, ou seja, não sejam encenadas em um palco, há algo que une o teatro e a dublagem: ambos lidam com traduções que serão interpretadas por atores.

Vale lembrar que todo dublador é ator, logo, por mais que apenas sua voz apareça nos produtos dublados, há uma entrega cênica no estúdio de dublagem, e isso é algo que foge completamente da alçada do tradutor. O que ocorre no estúdio é um momento posterior à tradução, outra etapa do processo em que profissionais continuarão o que o tradutor começou. É o momento em que o texto ganha um sopro de vida e, no fim das contas, é impossível prever o quanto da tradução será aproveitado.

Seja no palco ou no estúdio, a interpretação é a máxima

No estúdio, justamente por haver esse fator cênico, ocorrem as mudanças no texto e até a criação dos famosos cacos, por conta do que a imagem transmite para os dubladores. Agora, caso o texto consiga captar bem o que está sendo mostrado, e o dublador sentir verdade na tradução, aumentam bastante as chances de que ele duble a fala tal como ela está.

Entretanto, não tem como desconsiderar que, tal como em um palco, se um ator pode realizar um improviso em uma cena, por exemplo, na dublagem não é diferente. O dublador pode se sentir mais confortável ao usar outra gíria, diferente da que está no texto traduzido ou, de repente, usar uma expressão idiomática semelhante.

Obviamente que mudanças desse tipo não são culpa do tradutor, mas entram nessa questão cênica e de como esses profissionais lidam com o texto e com os personagens que interpretam. Os tradutores, logicamente, têm suas preferências linguísticas, assim como os dubladores e diretores têm as suas, e não há nada de errado nisso.

Porém, mesmo considerando os quatro fatores listados acima, seria mentira dizer que toda alteração feita é para melhor. Infelizmente, já houve casos não só comigo, como com outros colegas, de inserções de erros e, em alguns casos, erros de português em algumas produções traduzidas por nós. Contudo, vale voltar no que eu já disse: isso ocorre nos demais ramos da tradução também. A tecla em que sempre gosto de bater é a importância do tradutor sempre fazer seu trabalho com muito esmero e muita dedicação.

Não vou mentir: é comum o tradutor ser apegado às suas traduções. Por mais que nos orgulhemos de nossos trabalhos, sempre digo que o ego e esse apego excessivos precisam ser deixados cada vez mais de lado, de modo a não acarretar uma frustração constante. Sim, vão mexer na tradução em algum aspecto, em alguma esfera, é inevitável. Portanto, como dizemos em bom português, o melhor é “aceitar que dói menos”. xD

Quantos casos em que tradutores literários ou da área técnica já se estressaram com seus revisores? Eu poderia listar alguns casos de conhecidos meus, mas isso serve para mostrar que toda modalidade tradutória tem sua cadeia, e que os tradutores são apenas um componente. Um componente importantíssimo, é claro, por isso acredito que a capacitação e a profissionalização são a melhor saída para que qualquer projeto que entre no estúdio saia o mais redondinho possível.

Com preparo, estudo e muita, muita prática, muitas das falas concebidas por nós, tradutores, podem ser aprovadas e dubladas exatamente como foram concebidas originalmente, à medida que nos desenvolvemos. Essa, meu caro leitor, é uma sensação maravilhosa.

Trabalho em equipe: sempre a melhor opção

Assim como meus clientes confiam no meu potencial e no meu profissionalismo, nós, tradutores, também precisamos acreditar no potencial e na capacitação dos diretores de dublagem, dos dubladores, enfim, de todos os envolvidos da cadeia.

A dublagem, como sempre gosto de frisar, é um trabalho de equipe. Uma equipe disposta a dar o seu suor e talento nas mais diversas produções que chegam para serem dubladas em nosso idioma. Se cada um executar bem o seu trabalho e cada etapa do processo for feita com esmero e respeito, não há dúvidas de que continuaremos a ter dublagens de excelência.

Gostou do post de hoje? Gostaria de esclarecer algo que não tenha ficado claro? Então deixe o seu comentário para podermos interagir! Um grande abraço e até o próximo post especial do mês do tradutor! 😉

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

2 Comentários

Seh Mendes

10 de setembro de 2017

Paulo, a proposta desse blog é genial. Sou ator e já fiz curso de dublagem com o Felipe Grinnan. Ter um acesso como este a assuntos específicos desse universo da dublagem é maravilhoso.? Estou adorando!!! Seh Mendes – Pirituba – São Paulo.

    Paulo Noriega

    12 de setembro de 2017

    Oi, Seh, tudo bem? Fico muito feliz com as suas palavras. Seja muito bem vindo ao Traduzindo a Dublagem, e espero que desfrute de todo o conteúdo que tem nele! Fique ligado nos posts futuros também! 😉 Grande abraço!

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