Fala-se muito sobre qualidade na tradução, não é verdade? Temos que fazer traduções de qualidade, dizem não só professores da área, como também os nossos colegas de profissão. A motivação para este primeiro post de fevereiro veio de uma palestra ministrada por Henry Liu, no IV Congresso da Abrates, e que abordou exatamente exatamente esse tema. Diante disso, que tal conversarmos sobre esse assunto que dá muito pano pra manga e vermos como ele se aplica na área da dublagem? 😉

É perceptível que, nos últimos anos, o ofício da tradução vem recebendo mais atenção e destaque. Basta observar o grande aumento no número de congressos de tradução no Brasil e ao redor do mundo e também a atenção crescente por parte da mídia, seja através de matérias em jornais, em blogs ou em sites, por exemplo. Se durante muito tempo se reclamou da invisibilidade do tradutor, a sua exposição, cada vez mais frequente, traz um aspecto que, muitas vezes, pode não ser dos melhores: o julgamento alheio.

É sempre bom lembrar que as decisões do tradutor são avaliadas primeiramente pela equipe responsável pelo projeto. No caso da dublagem, elas passam pelo crivo do diretor de dublagem e dos próprios dubladores, além do cliente que encomendou a dublagem, obviamente. Só que, por mais que o estúdio e o cliente tenham gostado de suas soluções, existe um outro momento que, por muitos, é o mais temido: a recepção do público e até mesmo dos colegas e amigos de profissão.

Você está pronto para o julgamento alheio?

Digamos que suas escolhas não foram muito bem recebidas. Os comentários começam e, por insegurança, pode ser que você passe a duvidar da sua capacidade e do seu próprio trabalho que, na sua concepção, era de qualidade. Mas como saber se uma tradução tem qualidade ou não? Afinal, não é algo quantificável, não é verdade? Sim, qualidade não é quantificável e também é relativa, maaas não é por conta disso que não se pode avaliar uma tradução dentro de certos parâmetros.

Afinal, se fosse algo tão relativo e abstrato, não haveria bacharelados e pós-graduações de tradução, não é mesmo? Para qualquer área desse universo, há certos parâmetros que precisam ser estabelecidos e, como é o nosso foco aqui no blog, vamos trazer essa questão para a dublagem, de modo a ficar um pouco mais palpável.

Se pegarmos duas traduções realizadas por profissionais diferentes para um mesmo filme, eu te garanto que não demora muito para avaliar qual delas teria mais qualidade como um todo. Como já disse em um dos primeiros posts aqui do blog, a tradução para dublagem é composta por vários componentes, entre eles, a naturalidade dos diálogos e as sinalizações que devem estar no roteiro traduzido. Um diretor de dublagem não demora muito para perceber qual das traduções estaria mais natural e qual teria diálogos mais engessados, assim como a que teria menos sinalizações indicadas como pausas, vozerios e reações, por exemplo.

Dessa forma, a tradução que estivesse mais natural aos nossos ouvidos e com mais sinalizações seria a considerada com mais qualidade. Agora digamos que ambas as traduções estivessem super bem sinalizadas e com um texto agradável e fluido. O filme em questão é uma comédia e ambas as traduções deram soluções distintas, porém engraçadas cada uma do seu jeito. Como dizer qual delas tem mais qualidade? É aí que entramos na zona mais cinzenta e pessoal da tradução, não é mesmo?

O que sempre defendo na minha postura profissional é que o tradutor precisa, acima de tudo, estar consciente das escolhas que faz, pois como já falei, suas decisões serão confrontadas, seja pelo cliente ou pelo público. Quando esse momento chega, não tem jeito: é preciso encarar o bônus e o ônus. É natural o tradutor acreditar que suas escolhas são de qualidade e que merecem ser reconhecidas, mas a verdade é que, por mais estudioso e conhecedor das minúcias do seu ofício ele seja, esse atestado de qualidade pode ser colocado à prova, como já vi  acontecer em certas redes sociais por aí (sim, facebook, estou olhando para o senhor!).

Peguemos exemplos sem ser da área de dublagem e que não foram aceitos por unanimidade pelo público como, por exemplo, as traduções brasileiras das sagas Harry Potter e O senhor dos anéis. Muitos adoram, outros tantos torcem o nariz mesmo anos depois de suas publicações. É óbvio que cada um tem o direito a ter sua opinião, mas, infelizmente, o que vejo cada vez mais são tanto os colegas de ofício quanto os leigos desmerecerem gratuitamente as abordagens escolhidas sem ao menos tentar entender o porquê.

Quem está inserido no mundo tradutório e estuda a fundo esse ofício tão árduo sabe que existem vários caminhos e abordagens possíveis para se conduzir a tradução de produções audiovisuais, sejam legendadas ou dubladas, além de outras mídias como os livros e os games. Cada projeto é único e se boa parte das soluções puder ficar a cargo do tradutor, ele seguirá uma certa abordagem seguindo por um caminho X, segundo os seus motivos e convicções.

Até hoje, as soluções tradutórias de Harry Potter suscitam debates

De repente se o projeto caísse nas mãos de outro tradutor e de outra equipe, o caminho seria Z. E qual desses caminhos tem mais qualidade? Quem pode dar o aval supremo disso? Quisera eu ter a resposta para essa pergunta, mas a verdade é que a tradução é plural e com diversas expectativas e múltiplas visões. Existe a visão do próprio tradutor, do cliente, dos demais profissionais envolvidos e, por fim, a do público que, como a experiência e a história nos mostram, haverá a parcela que vai aprovar e elogiar e aquela que vai xingar e tecer comentários maldosos na internet. Ossos do ofício, fazer o quê?

O que o cliente vai dizer? O que seus colegas vão dizer? Quem vai aprovar? Quem vai torcer o nariz? Em meio a tantas incertezas que podem assolar o tradutor, o único conselho que me sinto capaz de dar e que também não me canso de repetir é: continue sempre estudando para ser o profissional mais capacitado e consciente possível. Faça o seu trabalho da melhor forma dentro das condições do projeto e deixe o futuro se encarregar do resto.

Por fim, no que diz respeito ao público, deixo mais um conselho: não deixe que a receptividade, principalmente em caso negativo, faça você duvidar de sua capacidade. Se nem mesmo obras tão aclamadas como as sagas Harry Potter e O senhor dos anéis que mencionei anteriormente e que, vale lembrar foram traduzidas por tradutoras de alto gabarito, foram abraçadas por unanimidade por suas respectivas legiões de fãs, seria utópico achar que justamente a sua tradução, seja do que for, seria aclamada por todos.

Em meio a tantas incertezas, o estudo e a capacitação são sempre a melhor pedida

E sabe do que mais? Receber críticas não é tão ruim quanto parece, principalmente se forem construtivas e vindas de pessoas que te querem bem. Eu, mais de uma vez, pedi para que conhecidos vissem certos trabalhos meus, pois eu gostaria de ter algum feedback deles na condição de telespectadores. Ah, e é importante também não ir para o extremo oposto, ou seja, para o lado do ego inflado que diz que a sua tradução é a oitava maravilha do mundo. Opte sempre pelo caminho do meio e abra o seu coração e a sua mente para algum novo ensinamento que possa surgir a partir de algum comentário e que você até possa aplicar em trabalhos futuros.

Agora quanto às críticas sem o menor embasamento,  como nos casos dos tão famigerados haters internet à fora, minha principal dica é: ignore-os. Simples assim. Tal como concluiu Henry Liu na palestra que motivou o post de hoje, eu deixo a mesma mensagem que ele deixou ao fim de sua fala: “Há parâmetros para a qualidade e ela pode ser questionada, mas, muitas vezes, ela apenas está nos olhos de quem vê.”

E você? Qual é a sua opinião sobre esse assunto tão debatido no mundo da tradução? Deixe o seu comentário para que possamos continuar a nossa interação! Um grande abraço e até o próximo post! 😉

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

2 Comentários

Gabriela

18 de fevereiro de 2018

Olá Paulo, muito bom e pertinente o seu post. Existem vários pontos a serem comentados, mas um em especial me veio em mente enquanto lia seu texto. Às vezes, tenho a sensação de que muitos críticos às traduções para dublagem são pessoas que não consomem ou preferem não consumir produtos dublados e, em determinados canais, se vêem obrigados assistí-los neste formato. Em muitos brasileiros com alguma fluência em inglês existe uma semente de tradutor em potencial que, por um apego e até amor à obra original, se vêem constantemente insatisfeitos com a solução oferecida pelo profissional de tradução. Especialmente quando se trata de expressões mais difíceis de traduzir- muito específicas e próprias à cultura da língua original. Eu mesma, antes de me tornar tradutora, tinha esse hábito questionador. É claro que críticas são sempre bem-vindas e, naturalmente, sempre temos muito o que aprender. Mas, hoje em dia, sempre que vejo um produto dublado ou legendado tento encará-lo com generosidade e frequentemente me surpreendo e aprendo com as soluções dadas pelos colegas. Enfim, achei que valia fazer esse comentário. Obrigada pela sua contribuição. Seu blog é muito interessante e enriquecedor.

    Paulo Noriega

    21 de fevereiro de 2018

    Gabriela, muito obrigado pelo prestígio e pelos seus comentários. Sei que você é colega de trabalho e trabalha com o grande Christiano Torreão, né? Tem conhecimento de causa pra falar. 😉 Mais uma vez obrigado por apreciar o meu blog e o meu trabalho.

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