O bom tradutor para dublagem é aquele que observa. Na verdade, não só ele, como qualquer bom tradutor que se preze, não é verdade? O tradutor é o profissional que tem a função de examinar e destrinchar todos os aspectos presentes em uma obra (seja um filme, uma série, um livro, um videogame, um documento técnico…) e, com toda a sua sensibilidade e conhecimento, seja capaz de transmitir esses aspectos para sua língua-alvo.

É por isso que estudar e analisar seu objeto de estudo é tão fundamental e, no caso da dublagem, há vários aspectos que precisam ser analisados como já disse no post sobre o método QOQ. Entretanto, no post desta sexta-feira que inaugura a nova fase do Traduzindo a Dublagem, vou destacar dois aspectos referentes a essa questão analítica na área da dublagem: a tradição e a análise linguística de uma produção audiovisual, tomando como uma base uma experiência que passei em 2015.

Não vou negar que sempre sinto aquele friozinho na barriga quando chega um gênero novo para traduzir ou uma produção audiovisual com uma temática com a qual não estou familiarizado, seja uma série de direito, uma animação carregada de gírias, uma comédia, um documentário sobre física quântica, um filme situado na década de 1950 ou um filme bíblico, por exemplo.

Além disso, o prazo é sempre um fator determinante para a qualidade final da tradução, então é sempre preciso avaliar quando situações novas chegam para nos desafiar. A verdade é que, mais cedo ou mais tarde, esses novos desafios aparecem, e é preciso estar o mais preparado possível. E e aí que a análise, especialmente, a análise linguística como forma de prevenção é tão importante para o tradutor atuante no segmento de dublagem.

“Mas por quê?”, você pode estar se perguntando. Basicamente por dois motivos: o primeiro (o mais óbvio) é fazer você perder um pouco do medo de lidar com a tradução de produções de certos gêneros e já ir se familiarizando com um pouquinho de tudo, afinal, nunca se sabe a natureza do próximo projeto. O segundo motivo, um pouco menos óbvio, recai na questão do respaldo, ou seja, se produções costumam seguir por um certo caminho e adotar uma certa abordagem, você, como tradutor, ganha respaldo delas para seguir na mesma direção.

No entanto, um aviso importante: não confunda respaldo com “Maria vai com as outras”. Saber o que já foi feito antes é ótimo e pode ajudar o tradutor a analisar os possíveis caminhos a seguir, mas, no fim, cabe a ele decidir como irá abordar/manusear a linguagem em certos produtos. Dito isso, chegamos à experiência que gostaria de compartilhar no post de hoje: a vez em que lidei com filmes bíblicos pela primeira vez e que precisei comunicar ao diretor de dublagem sobre algumas decisões que tomei, principalmente em relação à linguagem/registro dos personagens.

A produção em questão chegou no finalzinho de 2015 e se chamava Mary of Nazareth, um longa-metragem católico que foi dividido em duas partes, cada uma com uma hora e quarenta e dois minutos de duração. Como o título sugere, a produção narrava a vida de Maria, mãe de Jesus, desde a sua infância até a ressurreição de seu filho. O prazo para traduzir as duas partes? Duas semanas (graças a Deus rs).

Para minha sorte, eu já tinha alguns “atributos” a meu favor: tive criação católica e estudei em escola católica, logo os nomes bíblicos e os nomes das principais cidades e de locais importantes da época de Cristo, por exemplo, já eram familiares para mim. Entretanto, o modo como os personagens se comunicariam na versão dublada seria a parte mais desafiadora. Em meio a isso, outro fator importante foi que cresci vendo animações e longas bíblicos dublados, então foi necessário lançar mão disso para poder escolher a que, na minha opinião, seria a melhor abordagem para os dois longas.

Mary of Nazareth: minha primeira experiência com filmes bíblicos

As duas semanas que tive para traduzir foram de completa imersão, pois não só eram dois filmes longos, como também era uma temática inédita para mim, como já disse anteriormente. Sem perder tempo, logo nos primeiros dias de prazo e para “entrar no clima e captar a atmosfera” da produção, assisti a duas dublagens famosas de longas bíblicos que eu já tinha visto no passado e as considerava como bons exemplos. Além disso, também assisti a um filme nacional para ver como a linguagem bíblica fora tratada em uma obra audiovisual nossa. Feita essa análise inicial, chegou a hora de decidir os registros dos personagens.

Quando se pensa na Bíblia, costuma ser padrão lançar mão da segunda pessoa do singular e do plural, “tu” e “vós”, respectivamente. Lembra do respaldo que mencionei no começo do post? Afinal, já que as traduções mais clássicas da Bíblia utilizam “tu” e “vós” e o mesmo se aplica às dublagens clássicas de filmes bíblicos, esse era um caminho possível a ser seguido, correto? Com certeza, foi o que cogitei inicialmente. No entanto, só recorrer a isso não bastava, porque eu ainda precisava analisar o material que eu tinha em mãos: o original.

Jesus: a maior história de todos os tempos – uma das dublagens bíblicas que tomei como exemplo

Sempre gosto de dizer que o original nos dá a direção a ser seguida. Ele nos aponta o caminho e cabe ao tradutor estar atento para perceber isso. Ao analisar a linguagem presente nas duas partes do longa, reparei que os personagens não estavam se comunicando com um inglês arcaico, muito pelo contrário. A linguagem estava, de certo modo, atualizada, mais ou menos como fazem em algumas traduções das obras de Shakespeare utilizando o inglês moderno, de modo a facilitar o entendimento do público. E foi aí que, ao perceber que isso estava ocorrendo no longa, optei por não usar “tu” e “vós” a todo instante com todos os personagens.

Para alguns, utilizei a terceira pessoa (“você”) e para outros como o rei Herodes, os sumo-sacerdotes ou até mesmo o anjo Gabriel, utilizei “tu” e “vós”, dependendo do caso. Além disso, uma das dublagens de longas bíblicos de que mais gosto e que assisti novamente antes de iniciar a tradução, já havia utilizado essa estratégia, então me senti um pouco mais confortável de não seguir pelo caminho mais clássico e esperado para traduções desse gênero.

Como gosto de enfatizar sempre, cada obra é uma obra e cada projeto é um projeto. Não existem regras universais que se apliquem a todos os casos. O mais importante para o tradutor é entender o produto que tem em mãos e, com base no seu conhecimento linguístico e de mundo, chegar a soluções coerentes para as obras que traduz.

A anunciação do anjo Gabriel: ele é um exemplo de personagem que se comunica utilizando a segunda pessoa do singular

Ao término da tradução, vi que, justamente por não seguir o caminho linguístico mais óbvio, eu deveria escrever um relatório para o diretor de dublagem comunicando as minhas decisões e a explicação para cada uma delas. Foi a primeira vez que fiz algo do tipo, mas, como já disse, era um gênero que abordava a linguagem de uma forma muito específica, e eu senti que precisava defender a minha visão para não gerar problemas no momento das gravações.

O resultado final? O diretor ficou espantado por ter recebido um relatório de quatro páginas, mas elogiou o que eu havia feito. Atitudes como essa passam confiança para os diretores, e é disso que muitos precisam para poderem realizar o seu trabalho de forma mais tranquila no estúdio, pois sabem que tem tradutores parceiros em sua equipe.

Demorei alguns meses para poder conferir a dublagem, mas o resultado ficou lindo e os filmes foram exibidos na época do Natal daquele ano. Mesmo com toda a pesquisa e dedicação, acredito que ainda havia coisas que eu poderia ter feito um pouco diferente, mas acho que é o eterno inconformismo tradutório rs. A busca pelo aprimoramento é constante, mas garanto que não tem preço a sensação de saber que você fez o seu melhor dentro do prazo estipulado e que se dedicou ao máximo àquela produção.

Por fim, após compartilhar essa experiência com você, meu conselho final é: observe, observe e observe. Analise, analise e analise. Sempre. Caso você ainda não seja um tradutor atuante na área de dublagem, veja o maior número de filmes dublados que puder e o mais importante: veja produções de todos os gêneros possíveis, até mesmo daqueles que você não gosta. Vai que cai um na sua mão algum dia? Afinal, quanto mais munido para o combate o tradutor estiver, melhor.

Anote, seja no computador ou num caderninho pessoal, como a linguagem costuma se comportar nos mais diversos gêneros (mas criticamente, pelo amor de Deus!) e desperte e aguce cade vez mais o seu senso crítico. Dessa forma, garanto que você terá um grande reportório e estará mais capacitado para traduzir produções mais complexas, mesmo as que você não se sentiria tão confortável, a princípio.

Espero que tenha gostado deste post inaugural da nova fase do Traduzindo a Dublagem. Fique à vontade para deixar o seu comentário de sempre. Um grande abraço e até a próxima sexta-feira! 😉

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

10 Comentários

Dilma Machado

12 de maio de 2017

Parabéns, Paulo querido!! Suas experiências acrescentam muito o pouco conteúdo que temos sobre a tradução para dublagem!! Adorei. Keep it up!! beijos

    Dilma Machado

    12 de maio de 2017

    Ops… AO pouco conteúdo. rsrsrs

      Paulo Noriega

      13 de maio de 2017

      hahaha 😉

    Paulo Noriega

    13 de maio de 2017

    Sempre bom contar com o seu apoio, Dilma! Você é uma fonte de inspiração e fico muito feliz de poder contribuir de alguma forma para o nosso mercado. Obrigado pelas palavras carinhosas e pelo apoio de sempre!! Beijo grande =***

Rosana Vargas

13 de maio de 2017

Oi, Paulo.
Parabéns pelo post. Muito bom mesmo.
Sou tradutora ainda em início de carreira, faço alguns trabalhos pagos e voluntários de tradução para ganhar além de experiência, conhecimento.
Por favor, você pode indicar algum projeto de dublagem que aceite trabalhos voluntários?
Agradeço desde já pela ajuda possível.
Forte abraços,
Rosana Vargas Tradutora

    Paulo Noriega

    13 de maio de 2017

    Oi, Rosana, tudo bem?
    Fico muito feliz de ter gostado do post 😉 Então, Rosana, em relação à projetos de dublagem de caráter voluntário, existem os famosos fandubs (assim como existem os fansubs na área de legendagem). Os fandubs são fãs que dublam e, dependendo do que forem dublar, ainda mais se for algo inédito sem dublagem existente, precisam de tradução. Acredito que se você procurar no facebook ou em fóruns de dublagem a respeito, de repente querendo traduzir para alguns fandubs seria um possível caminho. No entanto, não é muito praxe na área de dublagem ter coisas de cunho voluntário, digamos assim. Tudo de bom pra você!

Viviane Andrade

2 de junho de 2017

Que texto excelente. Estou começando na dublagem e TUDO foi muito válido. Espero poder guardar tantas dicas boas. Obrigada!!

    Paulo Noriega

    2 de junho de 2017

    Que bom que gostou, Viviane. A intenção do blog é justamente essa: compartilhar meus conhecimentos como tradutor desta modalidade e abordar o maior número de assuntos possíveis relativos à tradução e à dublagem. Se quiser deixar sugestões de temas, fique à vontade! Beijo!

José Luiz Corrêa da Silva

8 de julho de 2017

Excelente o texto e a narrativa do processo de tradução, em particular para o foco na questão linguística das escolhas de tradução. Vou recomendar a leitura a meus alunos para que despertem para o tema e conheçam mais sobre essa área de atuação dos tradutores. Parabéns pelo trabalho!

    Paulo Noriega

    9 de julho de 2017

    Oi, José, fico muito feliz pelas suas palavras, de verdade! Muito obrigado! =)

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