Sabe quando o seu amigo cita uma fala icônica do mundo do cinema ou alguma frase nerd achando que você vai entender, mas você fica com aquela cara de quem não entendeu? Parabéns! Você (assim como eu, muitas vezes) não pescou a referência. 😉 Passado o breve momento constrangedor, seu amigo vai te levar para a luz e passar o conhecimento que você não tem (mas deveria ter). Dessa forma, quando você ouvir essa mesma referência no futuro, não vai mais ouvir o grilo cantando ao fundo.
Referências nerds, geeks, referências ao mundo da cultura pop em geral, ao mundo do cinema, do teatro… é muita coisa pra absorver, não é verdade? Afinal, nossos gostos são muito diferentes e próprios, o que faz com que cada um tenha conhecimentos mais aprofundados em certos temas do que em outros.
No entanto, o tradutor precisa estar sempre com a butuca ligada e tentar ficar sempre antenado, já que é muito comum as produções audiovisuais fazerem referências à obras externas. E é aí que o bicho pega porque elas podem ser desde frases clássicas de personagens do cinema ou dos games até frases de famosas peças de teatro.
Esse fenômeno é muito comum nos desenhos animados, por exemplo, por conta do efeito cômico que acaba sendo provocado. Como é sempre melhor citar exemplos, em um dos episódios que traduzi da animação Oh, no! It’s an Alien invasion! (Essa, não! É uma invasão alienígena!), um personagem dizia o seguinte:
“In the land of Foodtopia where the Brute Loops lie,
One loop to lead them, One box to bind them all
and in the morning feed them!”
Pescou a referência? Sim? Não? Bom, para quem desconhece, o trecho acima é uma referência ao famoso trecho presente na obra O senhor dos anéis. Dá uma olhadinha na semelhança:
“In the Land of Mordor where the Shadows lie.
One Ring to rule them all, One Ring to bring them all
and in the darkness bind them!”
Ok, mas digamos que eu nunca tivesse ouvido falar de O senhor dos anéis e tivesse criado uma outra rima sem ter percebido a referência no original. Faria alguma diferença? A resposta é um pouco óbvia: sim, com certeza faria. As referências empregadas no original não são ao acaso, e espera-se que o público da língua-fonte também pesque essa referência, afinal, O senhor dos anéis é uma das principais obras da literatura fantástica internacional e do cinema (não é à toa que o terceiro e último filme ganhou 12 oscars).
Sagas como Harry Potter, Crepúsculo, Cinquenta Tons de Cinza e Star Wars são apenas alguns exemplos de fenômenos globais que impactaram pessoas no mundo inteiro e que, vira e mexe, você pode encontrar referência a essas obras em alguma produção. Por exemplo, como não esquecer a frase célebre do vilão Darth Vader, de Star Wars “Come to the dark side of the force”, que antigamente era “Venha para o lado negro da força”, mas que, nos últimos anos, o lado negro se tornou o lado obscuro?
Passagens famosas das peças de Shakespeare também são muito utilizadas, como o inesquecível “To be, or not to be?”(“Ser ou não ser?”), da peça Hamlet. Enfim, as referências podem pertencer às mais diversas mídias e podem ser de qualquer natureza, desde as mais conhecidas e célebres até as mais sutis.
“Tudo bem, então, Paulo. Consegui pescar uma referência no produto que estou traduzindo. E agora?” Bom, aí vamos para o segundo e último passo, que diz respeito ao aspecto tradutório em si da referência. Vamos pegar um exemplo clássico. Conhece o Sméagol, vulgo Gollum da trilogia O senhor dos anéis (olha ela de novo!)? Caso não o conheça ou não se lembre, vamos relembrar com uma foto dessa criatura muito simpática:
A fala mais emblemática de Gollum e que, vira e mexe, é utilizada em outras produções é o famoso “My Precious!”, forma afetuosa pela qual chamava o anel de Sauron, objeto que idolatrava e que desejava ter a todo custo. A tradução ideal aqui seria “Meu precioso!”, pois é assim que está nos livros traduzidos da saga e também na versão dublada dos longas. Não vale outra coisa como “minha preciosidade”, por exemplo, porque aí acontece o que já disse antes: a referência se perde e não é o que a gente quer, né? 😉
Talvez você esteja se perguntando: “Mas, Paulo, não dá problema usar a tradução de uma outra mídia na sua tradução para dublagem?”. Olha, pela minha experiência, nunca tive problemas, mas algo que sempre fiz e aconselho a todo tradutor fazer também é o bom e velho “comunique o fato ao cliente e pergunte”.
Pela vivência de outros colegas de profissão na área de dublagem, nenhum chegou a me relatar problemas posteriores por usar uma tradução existente em outra mídia, mas já vi colegas da legendagem me dizendo que não podiam usar a tradução já estabelecida e tiveram de criar uma nova. Cada caso é um caso, por isso que perguntar é sempre a melhor pedida. Não dói e evita problemas posteriores.
O intuito deste post, obviamente, não é dizer que todos os tradutores devem virar especialistas em todas as áreas, até porque isso é humanamente impossível. Porém, há uma coisa que ouvi mais de uma vez de colegas e professores e que levo pra vida: para o tradutor, nenhuma informação é inútil e, além disso, ele precisa ter o máximo de cultura geral possível. Informação nunca é demais, e não importa que ela seja tida como “conhecimento inútil”, a princípio. Para a tradução, ainda mais a audiovisual, nunca se sabe quando essa “inutilidade” poderá fazer você pescar aquelas referências escondidas.
Quanto mais produções audiovisuais você assistir e mais leituras você fizer, mais munido estará para não deixar essas danadinhas passarem despercebidas. Quando o tradutor não pesca uma referência, ele não é burro ou necessariamente um mau tradutor, ele apenas desconhecia o produto/a obra que originou a referência, algo passível de acontecer, apesar de não ser o ideal.
Entretanto, como já disse no começo do post, as referências exercem uma função nas produções audiovisuais. Elas não estão lá por acaso, logo não deixá-las escapar é crucial para que essa função se mantenha na língua de chegada e o telespectador que esteja assistindo à versão dublada não fique de fora.
Espero que tenha gostado da dica do post de hoje e não se esqueça de deixar o seu comentário. Você já deixou escapar alguma referência em algum trabalho? Já lidou com produções que tinham alguma? Me conta que vou adorar saber. Um grande abraço e até o próximo post! 😉
Dilma Machado
29 de maio de 2017Um ótimo tópico para palestra!! Think about it!! 🙂
Paulo Noriega
2 de junho de 2017Boa ideia!! Anotado! Beijo, Dilma! =***
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